24 de nov. de 2013

Separação

        Ligação tênue e imortal
      Fruto de nosso envolvimento
      Destrua o laço que nos une
      Evite assim mais sofrimento.
   
      Torne o beijo doce
      Uma mordida agressiva
      E nosso sexo à noite
      Escuridão e raiva consumida.
   
      Veja o fracasso que nos rodeia
      Está satisfeita com tanta discussão?
      Jogue a aliança logo no lixo
      Liberte de uma vez o meu coração.
   
      Foi bom ou foi ruim?
      E os planos para o futuro?
      Não passaram de promessas vazias
      Proclamas durante o escuro?
     
      Agora a culpa é minha?
      De aceitar que acabou?
      Seja homem uma vez na vida
      E diga que você falhou!
    
      Assino qualquer papel em branco
      Para me livrar de suas invenções
      Sinta-se livre para correr pelo mundo
      Destruindo mais corações.
     
      Não fique chateada meu amor.
      Apenas aceite a verdade.
      Foi melhor vivermos brigando
      Do que ocultando calamidades.

      Deixo metade do coração quando partir
      E lágrimas que eu nunca queria derramar
      Rasgo a foto de nosso casamento
      Para termos algo com que recordar.
     
      Não existe mais barulho de crianças rodeando essa casa
      Nem o brilho estrelar que preenchia nossos olhares
      Tampouco a sombra do que pensamos existir.
      Sobrando a dor, decepção e a família
      O mundo cruel que abocanhou a nossa fragilidade
      Os pesadelos que se tornaram realidade
      A solidão que assombra o futuro.
      O dia que nos casamos
      Os dias que nós transamos
      E o dia em que nos separamos!

20 de out. de 2013

O Colecionador De Tetos

  Poeira rodopiava do quarto abafado cheio de livros, com uma cama solitária e um armário velho que guardava vários livros, aquele quarto raramente era frequentado pelos moradores da casa.
 Mas por ser pequeno, Jean de La Huerta gostava de brincar de colocar a mão no teto, por isso se agachava e pulava, pegando impulso enquanto a gravidade contava os segundos para levá-lo de volta ao chão. Após um primeiro fracasso, Jean tinha a certeza de que por poucos centímetros o seu objetivo não havia sido cumprido, mas que com um pouco mais de esforço, ele venceria a brincadeira e depois pularia mais vezes só para ter a sensação de colocar a mão no teto mais uma vez e constatar a fragilidade daquele limite mediante a sua capacidade.
  Assim, Jean se agachou e pulou, seu coração começava a disparar com maior facilidade, estendia as mãos o máximo possível, vislumbrava aquele teto branco próximo a sua visão, sua vontade de vencer aumentava e novamente seus dedos se perderam na solidão da derrota provocada pelos segundos que Jean descia para o ponto de partida.
  E foi assim sucessivamente, fracasso diante de fracasso. Jean colocava a mão no peito e sentia o seu coração bater acelerado, respirou rapidamente e decidiu repousar antes de continuar a agitar a poeira que encobria aquele quarto.
  Sentou na cama, segundos depois deitou na cama desarrumada.
  O teto parecia muito mais distante.
  Intrigado, Jean esticou o braço e estendeu os dedos no seu campo de visão, agora podia imaginar seus dedos tocando aquele teto levemente, acariciando-o, e perdendo o contato com ele ao mesmo tempo em que sabia que podia nutrir daquela sensação a qualquer momento.
  E por um longo tempo ele acreditou nessa história, porém nunca a sensação de tê-lo em contato com a sua pele aconteceu. Jean e o teto continuavam tão perto e tão longe, que a imaginação era a única forma capaz de unir o desejo de ambos.
 Cansado, aos poucos seus olhos claros se fecharam para uma soneca de poucas horas.

  - O que você quer ser quando crescer?
  - Eu quero ser general do exército brasileiro- respondeu Ricardinho, um garoto detestável.
  - Professora- respondeu Antônia.
  - E você Jean?- perguntou a Senhora Marília.
  Jean passou as mãos pelos olhos e arrastou-as até o nariz.
  - Eu quero ser caçador de tetos.
  Marília riu.
  -Interessante- pronunciou.
  - Isso não existe- disse Ricardinho- Você está inventando. Quatro olhos.
   A forma como ele falou quatro olhos podia ser interpretada como se Jean fosse anormal.
   - Ricardinho! Não fale assim com os seus colegas- Reprimiu a professora.
  Naquela tarde fria de outono, quando Jean chegou em casa, ficou tão transtornado com as palavras de agressividade de seu colega, que ao entrar no banheiro se derramou em lágrimas diante da pia e olhando para o espelho.
  Seus olhos azuis pareciam como um mar em dia de tempestade, seus traços labiais faziam caretas poucas vezes vista. Podia observar a caricatura da tristeza em seu próprio rosto. Mais uma vez se sentia um derrotado, até que ouviu alguém bater a porta.
 - Jean?- Chamou a sua mãe- Está tudo bem?
  Jean de La Huerta colocou as mãos próximas do peito, respirou profundamente e o mais silenciosamente possível e respondeu com uma voz normal:
  - Tá tudo bem.
  - O papai já ligou, daqui a pouco será servido o jantar. Não demore.
   - Já estou indo.
  Jean abriu a torneira e começou a lavar o rosto até a tempestade nos seus olhos se tornarem um oceano azul em dia de sol com o céu limpo de nuvens.
  Quinze minutos depois o garoto desceu as escadas, deu um beijo no rosto do pai e se sentou para jantar.
  - Essa cidade está um inferno. Tivemos mais destruição de patrimônio público com esses marginais infiltrados nas manifestações- disse o pai vendo as imagens do jornal da noite na televisão.
   Eles sempre deixavam a televisão ligada, porém ela sempre ficava no mudo para que não os distraíssem durante o jantar e em nenhuma das refeições em família, oportunidade que eles apreciavam muito.
   A mãe nem prestou atenção. Estava atenta com a lasanha e preocupada com o bolo no forno que não crescia.
  Jean pegou os talheres e começou a bater um no outro, fazendo um barulho engraçado, contudo, logo seu pai se incomodou e pediu para que ele parasse. Depois disso ele ficou aguardando a lasanha ansiosamente, sem nada para fazer. Apenas pensar. Até que uma ideia se iluminou com força em sua mente.
  - Pai, o que você queria ser quando era pequeno?
   Desprevenido com a pergunta repentina, o pai afagou a cabeça do filho e disse:
   - Espera um pouquinho Jean, só me deixa ver essa parte dos gols. Ontem o Brasil ganhou da Coreia de dois a zero.
   Jean bufou, o tédio começou a consumi-lo. Durante o jantar o seu pai nem havia se lembrado de responder a sua pergunta. Sua mãe estava num desgosto só, ela parecia que tinha feito o menor bolo do mundo.
   - Será que um dia você poderá fazer um bolo tão pequeno que será imperceptível a olho nu? – perguntou o garoto.
  A mãe nem respondeu, apenas sorriu enquanto pegava mais um pedaço de lasanha com o garfo e levava-o a boca.
  O resto do jantar foi o mais silencioso possível. A comida estava ótima, isso ninguém podia reclamar, mas a falta de interação entre eles naquele dia era nítida. Cada um levando um fracasso do dia nas costas e sem querer compartilhar daquele peso com nenhum outro membro da família para não expor as suas fraquezas diante das pessoas que mais amavam no mundo.
   Naquela madrugada, Jean acordou e se encaminhou para o quarto solitário, queria saber se durante a noite o teto ficava mais próximo do chão. Colocou as pantufas do Mickey e abriu a porta silenciosamente. Devagar, desceu as escadas e foi encoberto pelo breu quando chegou à sala. Durante aquela parte do dia ela parecia bem assustadora. As cadeiras envoltas da mesa pareciam solitárias e tristes, o relógio parecia declamar um poema assustador, seu barulho era muito mais intenso durante a noite.
  Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac…
   Ecos da finitude que o homem criou a si mesmo.
   Segundos, minutos e horas ininterruptas de uma vida que parece não ter fim.
  O tempo foi essencial ao fornecer ao jovem Jean se acostumar com o escuro e visualizar melhor os elementos que o permeavam naquele cômodo.
   Segurando-se fortemente em alguns objetos para não cair, Jean conseguiu se mover até a porta que dava acesso ao quintal. Da janela já dava para visualizar aquele local coberto pela luz do luar. Um espaço sem teto, sem limites. Infinito e encantado com anjos e histórias de esperança e solidão.
   Com aqueles olhos azuis intensos, Jean podia se esbaldar na beleza que afogava seu pessimismo por meio da visão que o tranquilizava em seus sonhos mais lindos.
   Ele girou a maçaneta e empurrou a porta.
   Um feixe de luz invadiu a sala, dando elegância aos móveis inebriados pela escuridão.
   Uma cortina de luz se formou e separou o cômodo em dois. Bolinhas brancas flutuavam no quintal num misto de brilho e transparência. Jean boquiaberto continuou o seu caminho, fechou a porta da sala e destruiu a cortina, que silenciava o tempo durante as belas manhãs.

   Estava frio no lado de fora da casa, por isso, Jean esfregou as mãos nos braços num ritmo acelerado. As bolas de sabão explodiam em poucos segundos. Mas a lua cheia mantinha seu ar soberano no céu.
   Jean de La Huerta se apressou para chegar ao outro lado do cômodo, passou por uma mangueira enrolada no chão, uma bola de futebol que ele e seu pai costumavam brincar durante os fins de semana e vários pregadores que haviam se soltado do varal por meio da ação do vento.
   A porta antiga de madeira parecia cada vez mais alta enquanto o garoto se aproximava.
   O teto o esperava com a mesma tintura e altura de outros tempos, e dessa vez o garoto torcia para que já tivesse ganhado alguns centímetros comparados com outrora. Sua mão tocou a maçaneta e puxou-a para baixo. Jean empurrou a porta para frente quando um barulho de carro saiu do quarto antigo e o sol desvendou um verde primaveril diante dos seus olhos.

 - O que está fazendo de pijama numa hora dessas? – Advertiu o seu pai.
  Um carro barulhento havia acabado de passar pela rua fazendo propagando de sorvetes por um real. Sua mãe, com um vestido roxo longo regava com a mangueira as flores do jardim. O pai havia deixado de lado os ternos e gravatas para vestir uma camisa regata e uma bermuda de praia. O dia estava lindo.
  - Vai se arrumar querido- Ordenou a mãe- Nesse momento seu pai pegou-o no colo com a maior facilidade e colocou-o sentado nos seus ombros. Naquele momento um sorriso aflorou dos lábios do garoto. Era um gigante agora, maior que qualquer pessoa que já tinha visto na vida.
  O pai correu no meio daquelas árvores, e o vento beijou-lhe a face.
  Jean estava irradiante, não sabia se estava com medo de cair ou com medo de acordar.
  Só conseguia sorrir, e acariciar os cabelos negros do pai como uma forma de agradecimento.
  - Como está ai em cima?- perguntou o pai.
  O filho não conseguia responder, observava a grossura dos galhos, os pássaros no topo das árvores, o teto vermelho vivo da casa e os tetos parecidos dos vizinhos.
  - Pai, me leva ali na varanda? Quero colocar a mão no teto da entrada da casa.
  - É pra já- disse o pai aumentando a velocidade e a adrenalina, fazendo Jean extravasar com alguns gritos pela perspectiva de poder cair de seus ombros.
  - Está firme assim em cima, garotão?
  - Sim!
   O pai subiu os três degraus que davam acesso à varanda cuidadosamente.
   O coração de Jean voltou a bater mais rápido. O teto cada vez mais próximo do toque de seus dedos. Do contato, da pele com o material sólido. Podendo alcançar a finitude.
   Quando estava estendendo a mão para tocar o teto, Jean foi assustado por um grito, até que rodopiou, rodopiou e se atirou dos ombros de seu pai até cair nos lençóis de sua cama, no travesseiro e na coberta que o protegia do frio da noite, e que estava jogada no chão.
   Alguém bateu na porta.
   - Jean, hora de levantar. Já estamos ficando atrasos para chegar à escola.
   Jean olhou para o teto do seu quarto com amargura. Esse ele tinha certeza de que jamais tocaria.                  Levantou-se da cama e começou a se arrumar. Colocou o uniforme com os olhos meio fechados, logo bocejou.
   Praticamente se arrastou pelo corrimão até a sala com a mochila nas costas. Sentou-se na primeira cadeira visível e de repente ficou espantado com os olhos fundos e vazios de sua mãe.
  - O que aconteceu? – perguntou o garoto. A mãe continuou o seu malabarismo com as panelas até colocar o leite e as torradas na mesa. Limpou as suas delicadas mãos no avental e sentou-se na cadeira que ficava de frente para o filho.
  - Coisas da vida- disse ela- Um dia dormimos de um jeito, e no dia seguinte podemos acordar numa situação completamente diferente. Falando nisso- continuou ela, pegando o guardanapo e limpando os lábios sujos de chocolate do filho- Depois da escola a mamãe precisa conversar com você.
  - O que eu fiz?- rebateu o menino, emburrado.
  - Você não fez nada querido- sua voz era doce, mas seu rosto mantinha a mesma amargura.
  Jean de La Huerta levantou-se, deu a volta na mesma e abraçou a sua mãe. Seus braços se cruzaram, os rostos se mantiveram colados até o filho beijar-lhe o rosto.
  - Obrigada.
  - Pelo que mamãe?
  - Por existir.
  Um sorriso aflorou dos lábios dos dois. A esperança parecia reluzir uma chama mais poderosa. A conversa havia terminado. No percurso até a escola, os dois se mantiveram calados durante todo o caminho. Fragilizados pelas mudanças das próximas horas, palavras de adeus foram pronunciadas para atenuar o máximo possível à normalidade dos próximos minutos.

  Algumas Horas Depois
  A chuva caia com tristeza no asfalto. Dentro do carro amarelo em frente à residência dos De La Huerta, o motorista virou o corpo e perguntou para o patriarca daquela família:
  - Para onde vamos senhor?
  Ele virou o rosto e observou, pelo vidro embaçado, a fachada da casa que um dia foi o seu lar. De repente, uma decepção contaminou o seu peito. Seus dedos apertaram o botão para abaixar o vidro, e dessa vez ele conseguiu enxergar com nitidez o mundo que deixava para trás.
  A casa continuava com o mesmo aspecto do dia em que entraram pela primeira vez.
  Com um jardim florido, uma aparência solar e com a esperança de que tudo terminaria ali. Nesse momento ele lembrou-se até das promessas que não havia cumprido.
  - Te amarei para sempre- pronunciou no primeiro dia após o casamento.
  Sua esposa, deslumbrante em sua visão e em seus pensamentos beijou-lhe os lábios com afeição. Durante aqueles segundos, nenhum dos dois pensava nos obstáculos que poderiam surgir ao longo da vida. Nesse momento de infindável realização, parecia que apenas os dois submergiam de um oceano profundo de limites e perigos. Parecia que podiam viver apenas de amor.
   O pai suspirou profundamente, apertou o botão para subir o vidro e disse:
   - Rua Arthur Thiré- Vamos para um lugar melhor, pensou.
   O motorista assentiu e apertou o acelerador até a casa se tornar uma lembrança nas ruas do pensamento. 

   A mãe observou, pela janela do quarto no andar superior, o táxi se distanciar.
   Uma mala estava aberta em cima da cama desarrumada. No armário o espaço destinado às roupas do marido estava vazio. Com o olhar perturbado, ela não conseguia esquecer as palavras da última noite.
   - Sophia, eu tenho uma coisa muito séria para te dizer- disse David, sentado na beirada da cama com uma mão esfregando na outra- Desde que nos casamos nossa vida nunca foi igual àquilo que imaginávamos. Mas, mesmo assim, tentamos modificar o nosso jeito para que nossos sonhos se tornassem realidade.
   - Não estou gostando dessa história, David. Diga logo aquilo que você quer dizer. Não coloque a culpa de tudo isso na nossa relação. Assuma, diga de uma vez por todas as suas limitações. Você acha que eu não percebo? Você acha que eu não sinto? Que o coração que bate no meu peito é feito de gelo?- Essas últimas palavras foram ditas com a voz alterada.
   Sophia levantou-se e fechou a porta para não acordar o filho Jean, que nesse momento sonhava com os pais no jardim da frente.
   - Se você sabia de tudo que nós estávamos passando, porque você não fez nada?- Perguntou David, passando as mãos pelos cabelos lisos e negros.
   Uma lágrima caiu de seu rosto no presente. Sophia olhou para o espelho e viu o tempo esculpido na sua face. As rugas, as marcas, o corpo. Não era mais aquela garota que arrebatava o coração dos garotos do bairro. Agora se sentia velha e gorda, mesmo que não estivesse. David não a queria mais. David não a queria mais. David não a queria mais. Palavras que ressoavam em seus ouvidos.
   Ela voltou a fechar os olhos e a briga de alguns minutos atrás veio à mente.
  - Quem você pensa que é? Quem você pensa que é?- Perguntou ela com os olhos esbugalhados e com as mãos fechadas batendo no peito de David.
  - Pare com isso- disse ele, tentando imobilizá-la- Você não vê que está assustando o garoto.
   Jean de La Huerta observou quando o pai empurrou a mãe e ela esbarrou na mesa da sala e fez cair o retrato da família de que ele tanto gostava. Um risco de ruptura destruiu a beleza do congelamento da felicidade daquele momento. Os três riam naquele dia para a câmera, felizes por estarem juntos. E quem imaginaria de que anos mais tarde, essa foto seria o símbolo da destruição de sua família?
  Alguns cacos de vidro invadiram o chão.
  - Você viu o que você fez?
  - Eu quero que você entenda Sophia. Eu não deixei de gostar de você do dia pra noite. Eu te amei, e tentei fazer o máximo possível para preservar a nossa família. Contudo, eu não consegui. Paciência. A nossa história acabou.
  - Fez de tudo? Você chegava do serviço e nem dava atenção para o seu filho. A televisão parecia te enfeitiçar. Eu não recebia um elogio. Dia após dia, fazendo todos os afazeres, tentando te agradar. Aceitando os seus erros e as suas vontades.
   - Não coloque o Jean no meio dessa história- implorou o pai- Filho, suba para o quarto.
   - Não Jean. Fique- ordenou a mãe- Cansei de lutar. Suma da minha vida, David. Você nunca ocupou o seu espaço na nossa família. Agora- seus lábios estavam molhados de raiva- Diga para o seu filho como você destruiu a nossa história. Mostre para ele o seu fracasso, as suas limitações. O homem egocêntrico que se tornou- Ela deu as costas para os dois e continuou a falar enquanto subia a escada- Vou subir e arrumar minhas coisas e as do Jean. Vamos para a casa da vovó querido- disse para o filho.
   Voltou a abrir os olhos, a maioria das roupas já estavam dobradas e dentro da mala. A chuva continuava a bater na janela. Sophia olhou para o teto, e sabia que logo acabaria.

  O porta-retratos estava espatifado no chão. Mais a frente à porta que dava para o quintal estava aberta.       Jean já se encontrava dentro do quarto antigo. Não perderia a oportunidade de tocar-lhe o teto, nem que fosse a sua última tentativa. O cheiro de coisa velha continuava impregnado no ar. O garoto abriu o armário e teve uma boa ideia. Pegou os livros antigos e começou a empilhá-los um em cima dos outro. Dessa vez teria a altura necessária para tocar os limites daquele quarto, sua última chance.
  Suas mãos tremiam, lágrimas escorriam dos seus olhos. A despedida do pai havia sido um momento muito difícil, conseguia lembrar-se do barulho das rodinhas de sua mala deslizando pelo chão de madeira da sala. Do abraço carinhoso, das promessas de que o amava e de seu corpo sumindo no retângulo que irradiava espectros de luz fraca para a liberdade do mundo sem fronteiras. O futuro sem ele parecia muito assustador, nesse momento, Jean não conseguia imaginar sua nova vida na casa da avó. Com tetos tão próximos como os pés do chão
  .Limpou as lágrimas com as mãos e empilhou os livros. Um por um, cuidadosamente.
   O coração começou a bater mais depressa enquanto ele subia naquela montanha de conhecimento. A respiração ficou mais rápida. Os joelhos afrouxaram alguns centímetros para ganhar impulso. Uma das mãos se estendeu o máximo possível para cima. Faltavam poucos segundos. A poeira que cobria o quarto estava preparada para se movimentar junto ao vento.
   Três, dois, um, pensou o colecionador de tetos.
    Jean pulou junto com algumas lembranças.
   - Eu preciso encostar-me ao teto- disse ao pai.
   - Você não precisa- disse o pai com cicatrizes corroendo-lhe o peito- A sensação de passar limites é fantástica, mas logo chega o momento de colocar os pés no chão. E nada é mais duro do que perder as idealizações que tanto sonhou, e chegar ao chão com a impressão de que era melhor nada daquilo ter ocorrido.
   - O que você enxerga mãe?- Perguntou o garoto junto à mãe, admirando a paisagem que se estendia na janela do quarto.
   - Só o que meus olhos conseguem ver- disse ela sabendo que havia muita coisa, além disso.
    - Mas você pode imaginar- insistiu ele.
    - Sim. Mas não posso sentir.
     As nuvens se dissiparam quando seus dedos tocaram algo duro, algo almejado ao longo de muito tempo, o teto.
    Poeira rodopiava o corpo do garoto.
    Os livros se desalinharam e se destrincharam do monte.
    Jean agarrou-se ao concreto que tanto desejava.
    No fundo, todos somos colecionadores de tetos, barrados por nossas limitações. Ao longo da vida tentamos superá-las, mesmo sendo difícil, sempre persista! Ao longo da vida dezenas de pessoas tentarão nos desmotivar, tentando convencer-nos de que somos malucos e de que nossos sonhos nunca se tornarão tão sólidos quanto o teto de uma casa aconchegante. Às vezes sentiremos que é melhor continuar naquele quarto antigo em que vivemos todos os dias, naquela rotina que nos protege das recompensas e dos perigos do oceano que cerca a vida. Um escudo sufocante que nos impede de viver!
   Perfure o teto e encontre novos limites. Você é capaz! Lá fora existe um vento forte pra nos renovar, um céu que nos faz crescer e uma lua que nos faz sonhar!
  O teto tocou Jean, e mostrou que a sua felicidade não morava ali.
 
  Fim!

6 de set. de 2013

Irretocável

  Luz. Abrem-se as cortinas do espetáculo
  Vermelho sangue e olhos azuis
  Nus perante a platéia em êxtase
  Deslizam pele sobre pele.
  Tato a tato.
  Soltando faísca e aumentando a fumaça
  Do enigma grudado ao pensamento
  Das calças dos homens
  Empinadas por seus desejos
  E mesmo se fechar os olhos
  A imagem continuará em plena perfeição
  Nua, límpida, melhor do que a real
  Criativa.
 
  Não há mais adversários,
  Só seus lábios sensuais a procura dos seus,
  Fios de cabelo deslizando por seu peito
  Panos deslizando pela cama,
  Em movimentos serenos.
 Aos poucos as peças se encontram
 Como tantas que já desfrutaram
 Da alma de seus odores puros
 Da alma de sua incompreensível podridão.
 Mas nada disso importa.
 Vocês estão juntos,
 Unidos por esse laço
 Infindável, infinito, transbordante
 Ao sentimento humano.

  Nesse exato momento,
  Em que não se sabe quem é quem
  Desfrute o beijo molhado
  Os arranhões, carícias e confissões.
  Faça com corpo e alma,
  Latente, sensual e precisa
  Buscando alcançar a satisfação
  Do infinito,
  E a certeza de que é real
  Puro e verdadeiro.
  
  E quando vocês sentem que chegou ao fim
  Eis que a culpa surge ao leve átimo
  E a procura pelas portas parece precisa
  Para revelar a fuga que os permeia
  No jardim de tantos risos adolescentes
  No mergulho de tantas ondas indecentes
  E de repente você consegue entender
  O estranho,
  Na lareira perto das chamas
  Brindando ao amor e a compreensão
  Da vida sem mocinhos e sem vilões.
 
  E você se sente bem
  Com os braços estendidos ao mundo
  Respeitando as normas do jogo
  Pulando de dez metros de altura,
  De cem, de mil.
  Não importa.
  Porque você entende
  Que o lugar mais alto do mundo
  Habitado por velhos anjos
  Sempre teve espaço pra vida
  E pra morte dos que ainda não foram.
  E que o lugar mais baixo do mundo
  Sempre teve espaço pra morte
  E pra vida dos que já foram!

23 de ago. de 2013

O Começo e o Fim

"Fiquei marcado pelas lições aprendidas ao longo do tempo, parece que a cada dia eu consigo compreender melhor o mundo e as pessoas. Nossos erros, nossas virtudes, nossas diferenças e igualdades".


  Leila Satykova espiava pela fechadura da porta, queria observar de perto os segredos humanos. Mais perto, mais perto via nossas fraquezas e nossas habilidades. O barulho dos beijos ardentes e o do tiro devastador. Um grito de alegria e outro de horror. Seus olhos acinzentados ficavam esbugalhados com as novas revelações, o coração palpitava de angústia e desilusão, sentia asco das relações humanas. Não podia ficar nem mais um minuto vislumbrando a mistura da gélida razão com a animalesca emoção do homem.
  Decidida, Leila ficou de pé e contemplou a bela porta vermelha aumentar o seu tamanho diante dos seus olhos. Não podia sentir nojo de si mesma, girou a maçaneta e correu pelo universo a procura de uma vida mais perfeita que a humana.
  As estrelas iluminaram o seu caminho como a tochas iluminavam os exércitos da Idade média. A lua cantava uma música esplêndida parecida com os poemas dos poetas que ficavam divididos entre o amor e a solidão. O sol mostrava toda a sua soberania assim como os monarcas absolutistas que concentravam o auge do seu poder na Idade Moderna.
  Leila ficou perdida com tanta semelhança, a Terra parecia um espelho do universo, logo percebeu que aquela relação era natural e pura, o universo dotado de hierarquia, uma hierarquia que o próprio homem criou. O universo submerso em mistérios e a Terra mergulhada em soluções.
  O esclarecimento das suas dúvidas gerou um peso na sua consciência, Leila não conseguiu alcançar outros planetas, estava caindo em meio as nuvens que não podiam sustentá-la. O tempo passou rápido e o seu corpo atingiu uma árvore. Ficou triste com a bela paisagem, queria colocar em prática todo o seu sofrimento. Ainda estava viva, ainda estava viva!!! Jogou-se dos galhos e rastejou pelo gramado até a lagoa azul e imortal, colocou a sua mão sobre a água, porém uma camada de vidro a impediu.
  Ciano desbotava da tela. Pincéis tentavam impedir a sua morte, mas Leila fugia, fugia da tela mística e doce. Correndo sobre as águas inexistentes, o chão azul. Até o momento em que sua velocidade se desvencilhou das cores do quadro.
  Com muito esforço, o mundo das aparências foi deixado de lado perante a realidade.
  Leila encontrou três janelas douradas num cômodo circular e vazio construído por rochas.
  Na primeira janela uma mulher fazia relação sexual com uma máquina diante de raios de sol e da falta de luz.
  Na segunda janela um homem chorava incessantemente como uma criança, algemado por seus antepassados com armas. Seguindo diariamente os mandamentos que proporcionavam a sua destruição.
  Na terceira janela Leila viu a si mesma. Uma criança e uma mulher. Tudo e nada passavam no córrego da morte. Ouvia gritos dos assassinados, das mães que enterravam os filhos e dos filhos que enterravam os pais. Lágrimas eram derramadas de raiva no rosto triste de injustiça.
   Com vergonha, Leila escondeu suas partes íntimas com terra, depois se cobriu com flores e deitou na cova rasa. Queria morrer. Queria morrer, mas não conseguia.

16 de ago. de 2013

Uma xícara de chá

Emma assoprou com força, mas mesmo assim o líquido fumegante quase queimou a sua língua.
Thelma, sentada com um vestido preto de renda estava com as pernas cruzadas e com um sorriso no rosto marcado por dezenas de plásticas.
As duas estavam frente a frente, sentadas confortavelmente em cadeiras fabricadas com madeiras obtidas ilegalmente na floresta Amazônica.
- Está muito quente, querida? – perguntou Thelma com seu sorriso peculiar.
Emma colocou a xícara de volta ao pires, limpou os lábios com um pano de seda e pegou uma colher de sopa para mexer o chá.
- Nada que não possa ser contornado com um sopro ou seus luxuosos talheres.
- Sempre tão gentil.
- Aprendi com você – piscou Emma e depois de alguns segundos perguntou- E como está George?
- Trabalhando, como sempre. Ele sabe que precisa de muita sabedoria para criar uma família com tantos privilégios como a nossa.
Com as duas mãos tampando a boca, Emma sentiu vontade de rir.
- Desculpa, Thelma. Mas ouvi dizer que George está passando algumas noites na casa de praia em Honolulu.
Thelma levantou-se e passou as mãos levemente pelas pernas.
- Mais chá?
- Não. Obrigada.
- Eu e George sempre vamos passar algumas noites em Honolulu. Não vejo nada de importante nisso. Já David, depois que se aposentou dos gramados, parece estar sempre presente nas festas noturnas de Ibiza.
Emma quase engasgou com o chá, sua xícara quase se espatifou no chão.
- Querida, os nossos maridos precisam suprir certas necessidades- começou Thelma- Nós não devemos nos prestar a certos serviços. Seria muita futilidade. Por exemplo, David foi um astro do futebol, milhares de mulheres sonhariam em conhecê-lo, e ele gostaria de aproveitar um pouco do carinho dessas fãs. Se ele ficasse totalmente restrito a vossa relação, o casamento seria uma infinita amargura para ambas as partes.
- Não, Thelma. Não sou igual a você. Não posso aceitar.
A mulher de vestido preto se aproximou de Emma e pousou a sua mão gentilmente sobre a dela.
- Não precisa aceitar, basta esquecer.
- É o que você faz?- perguntou Emma.
- Sim, é o que eu faço- Thelma começou a se encaminhar para as portas que davam acesso ao Jardim de Inverno vendo os raios de sol despertarem da tarde fria- Tudo na vida tem um preço, e esse é um preço justo a se pagar.
- E se David não fizesse nada disso? E se ele quisesse manter a sua fidelidade aos votos que ele cumpriu em pleno altar?
- Eu diria que azar. Não há nada pior do que um homem fiel, que espera atitudes suas que nunca serão realizadas. Ele começa a perder o encantamento por você a cada dia. Porque não somos rainha e princesas, temos defeitos costurados pelo tempo que nos separa. Quanto mais distante melhor, porque assim conseguimos esconder as fraquezas que permeiam a nossa alma. E nossos reencontros fortalecidos pela saudade podem transformar a nossa relação num pequeno conto de fadas.
Emma levantou-se pensativa e admirou as obras na casa de Thelma, não podia acreditar no veneno que ela despejara sobre o seu exemplar marido.
- Que bonito esses bonecos de pano- Emma tentou mudar um pouco de assunto.
- George trouxe da Indonésia, foram feitos por crianças.
- O país recebeu várias denúncias sobre exploração de trabalho infantil nos últimos anos, parece que até grandes multinacionais estão envolvidas.
- Não nos recrimine, querida. Se nós não comprássemos, outras pessoas comprariam. E pensa pelo lado bom, pelo menos eles estão ganhando dinheiro para sobreviver.
Emma voltou a sentar, não queria discutir sobre trabalho infantil com uma pessoa que não ligava a mínima para os problemas sociais. A história de seu marido perturbava-lhe a mente.
Thelma voltou com os seus anéis de diamante para frente da mesa, com sua cara dissimulada e bondosa perguntou:
- Mais chá?
Fumaça saia pela chaminé.

1 de ago. de 2013

Castigo

Esperando o tempo passar. Procurando a foice que rasgará silenciosamente minha pele, mostrando uma gota de sangue escorrendo por meu pescoço. Quente, humana. Sem esperança. Jogado no abismo da infinita escuridão, onde vozes se perdem no grito de dor, e imagens se produzem na beleza do fim.
Mergulhado em pensamentos ruins tento produzir a tristeza que irradia meus olhos escuros. Sei que perdi, a última chama se apagou com o pecado que cometi.
Não vejo luz, não vejo salvação.
Fico deitado com o cigarro na mão, produzindo fumaças em forma de monstros. Sozinho. Sozinho procurando entender onde me perdi, onde a maldade se expandiu.
Raios demonstram flashes assustadores. Nunca mais conseguirei dormir.
Nesse momento, em que o mal do cigarro contamina o meu pulmão, uma mulher chega para terminar o serviço. Não se enganem, não é nenhum anjo daqueles poemas tristes, mas sim uma serva pronta para realizar a sua tarefa.
Com um simples olhar, reconheço seu jeito sedutor. Antes de me levar para o inferno, seus lábios lambem o sangue que escorre por minha pele lentamente como se estivéssemos tendo alguma cena de amor.
Fico ali, inerte.
Esperando o golpe fatal.
Até o momento em que uma de suas facas acerta meu coração. Que aos poucos começa a parar de bater. Medo.
Vejo seus seios nus. Seus lábios gosmentos. E o mundo gira, gira com gritos de piedade não atendidos. Gira, gira com risadas maldosas.
E... Para.
Estou em meu corpo, mas não posso me mexer. Não enxergo, não escuto, não falo. Mas penso.
O pior de tudo. Sinto.
Porque quando corpos me seguram e me colocam no caixão, tento gritar pedindo ajuda. Porém, não consigo me mexer, não consigo falar. Sou eu contra a minha mente até a eternidade. Perdidos no escuro, pagando pelos pecados de matar alguém.
Depois de um tempo não me aguento, começo a querer parar de pensar, deixar de existir. Só que sou castigado, não tenho escolha.
Quando o enterro termina, insetos começam a invadir o caixão. Continuo sentindo suas patas inundarem a minha pele, entrarem pela minha boca e eu não posso fazer nada. Castigo, bem-vindo.
Tento lembrar coisas boas, porque já amei.
Penso em flores, porque já fui romântico.
Penso em risadas, porque já tive família.
Penso em bola, porque já tive diversão.
Penso em abraços, porque já tive amigos.
Penso em beijos, porque já tive amor.
Penso, penso, penso. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trinta e um dias por mês e dois mil e treze anos até o fim de tudo.
Penso porque não escolhi o bem.
Penso porque acolhi o mal.
Penso, penso, penso em dormir.

Penso em não pensar e penso em recomeçar!

15 de jul. de 2013

As Formigas e o Leão

“Até mesmo os poderosos podem precisar dos fracos.”
(Esopo)

Raios de luz. Sol, poder. O leão abria os olhos, dourados, para o mundo como a claridade desperta a manhã.
Seu aposento coberto por lã vermelha vinda de Vucana acolhia seu pêlo confortavelmente durante o sono.
Enquanto isso, as formigas trabalhavam a todo vapor. Com um centímetro de comprimento comunicavam-se pelas antenas. Desde o alvorecer, milhares cumpriam suas tarefas para o “Rei da Selva”.
Não pensavam, obedeciam. Durante as suas seis a dez semanas de vida faziam do seu trabalho uma locomotiva de afazeres que resultavam no maior tesouro do Leão. O tempo passava e seus feitos eram desprezados como o seu tamanho e sua insignificância. Pareciam um fantasma para o reino, imperceptíveis a um elogio ou um gesto de valor.
Três das bilhares de formigas tinham o privilégio de cuidar dos aposentos do Leão, que a essa altura se encontrava na sala dos prazeres tomando o seu café da manhã.
O leão tomava leite fresco, se arrastava nos móveis como um gatinho mimado. Bocejava, mostrando a sua boca enorme e seus dentes afiados.
Após alguns minutos brincando com uma bolinha vermelha junto com Juno um bicho-preguiça, seu braço direito, o leão voltou para os seus aposentos que já haviam recebido o impecável toque das formigas.
- Juno, algum problema com as questões do reino? – perguntou o Leão.
- Problema? Vossa Majestade nunca perguntou sobre os problemas relacionados com a selva. Espero não ter recebido nenhuma queixa. O senhor nem imagina o meu grande esforço para colocar tudo em ordem. Nem queira saber, é um tremendo trabalho. Só de pensar...
- Não se preocupe, confio em você. Só queria sair um pouco da mesmice, às vezes fico com um tédio ao cair na rotina.
- Normal, meu Lorde. A sociedade é feita assim, de confiança. Digamos que uma confiança cega, ninguém gosta muito de saber o que seus governantes estão fazendo desde que a sua situação esteja de bom tamanho. Pra que arrumar confusão? Só de pensar...
O Leão sorriu.
- Às vezes te acho tão engraçado.
- Precisamos buscar rir sempre, para não acabar chorando.
Ao olhar para a janela do cômodo, o Leão e Juno observaram construções, limpeza e absoluta ordem em equilíbrio com o verde da natureza.
- Parece que está tudo bem- disse o Leão.
- Claro que sim- respondeu Juno. As formigas continuavam o seu trabalho, dia a dia, do amanhecer ao crepúsculo com o suor no corpo que derretia os seus pensamentos.
Nesse momento o leão rugiu. Símbolo do seu poder, vibrante e triunfante.
As formigas ouviram ao longe, pararam um segundo para pensar, contudo logo continuaram. Havia muito trabalho para fazer.
Juno se despediu e ia saindo dos aposentos do rei quando o leão percebeu que sua lã vermelha vinda de Vucana estava arrumada magistralmente. Queria saber os verdadeiros responsáveis desse feito. Juno bateu a porta e a preguiça tomou conta do Leão. No fundo ele achava que Juno também não sabia.
Só de pensar...

19 de jun. de 2013

O meu cartaz

A criança acordou de um sonho estranho. Uma fera sentada numa cadeira com os olhos vendados e uma luz circular em sua volta iluminavam o local. Enquanto isso, a criança continuou na escuridão, repleta de silêncio e covardia. Dançando com o vislumbre da invisibilidade e com o tremor da incompreensão, seus passos lentos e meticulosamente programados. Um pra trás, dois pra frente, com movimentos leves que se tornaram brutos. Com corpo e alma que se tornaram um só. Rodopiava em torno da fera como se sua dança fosse uma assombração. Queria vencê-la! Espalhar seu sorriso, espalhar seu encanto. Superar suas angústias, superar seu espanto.
Com delineações embaçadas, a atmosfera se transformou no espetáculo que sempre sonhou, como se a realidade pudesse ser transformada num local muito mais igualitário do que a própria complexidade humana. Um paraíso terrestre.
Porém, faltava a criança um último problema a ser resolvido. A fera. O que fazer com algo que causa tanta devastação e infortúnio?
De repente, a criança se jogou na luz e perguntou a fera:
- O que fazer com você?
- Mostre-me a luz, mostre-me seus olhos- implorou a fera- Não posso lutar com algo que não posso ver, que não posso... sentir.
- Quem disse que estamos perto de travar uma batalha?
- Nem todas as batalhas são físicas, nem todas as batalhas apresentam inimigos reais. Algumas defendem ideias, outras novas ideologias, novos mundos, maneiras de pensar. Você poderia substituir a palavra batalha pela expressão ultrapassar obstáculos talvez.
Nesse momento, a criança cobriu o rosto da fera com um capuz. Colocou uma arma em suas mãos. Bateu-lhe e chutou-lhe por várias vezes em diversas partes do corpo. Deixou-a no escuro perante a eternidade e depois a jogou no lugar mais desprezível do universo.
A criança cresceu, virou pré-adolescente, adolescente e adulto.
Na sua festa de quarenta anos admirava a sua beleza perante o espelho que tantas vezes mostrou o belo sobre a podridão. Exatamente aquilo que os mais unidimensionais gostariam de observar.
Apalpou as faces com cuidado para ter certeza de que ainda estava vivo. Jogou perfume no corpo para melhorar o cheiro esdrúxulo de sua alma. Caminhou para o salão principal recheado de luxo como se fosse um verdadeiro sultão. Dançou, ganhou dezenas de presentes de pessoas que nem sequer se preocupavam com a sua felicidade e bem-estar, bebeu champanhe e cortou o bolo.
Naquela noite, antes de trocar de roupa para se deitar, o adulto observou a fera pela janela próxima à entrada de sua residência.
E a fera olhou-o de uma forma intensa e raivosa. Pulou o muro. Invadiu a sua casa, ela estava pronta para se vingar. O adulto podia sentir. O vento levava um frio que causava medo a sua alma, ao seu coração. E a fera já devia ter entrado sem qualquer resistência. O adulto empurrou alguns móveis para tentar manter a porta fechada, porém todo seu esforço foi em vão.
A fera entrou.
O adulto começou a andar para trás, até que tropeçou em algo e caiu na cama.
A fera se aproximou.
- Deixe-me ver seus olhos -disse ela- Engraçado, não vejo nenhum vislumbre de luz.
- Estou sonhando?- perguntou o adulto.
- Só se for um pesadelo- A fera deitou na cama e passou a mão pelos cabelos do adulto- Feche os olhos e durma. Durma- disse num tom de voz parecido com as de canções de ninar- Não há nada a se fazer!

9 de jun. de 2013

O mar de Pritilly

O mar de nossas vidas sempre reservou momentos de grandes turbulências e brisas amenas. A cada dia vivendo do mesmo jeito. Manhã, tarde e noite com pequenas oscilações durante cada período. Acordar e dormir, sonhar e desejar. Palavras que parecem dançar ballet tamanha suavidade e beleza de seus movimentos. Umas tão próximas, outras tão distantes. Normal para quem vive todo dia aguardando alguma aventura que possa intensificar esse pacífico oceano.
Oceano de ideias, de sentimentos e sobretudo de medo. Sim, medo. Buscamos nos sentir confortáveis com nossa habitual situação, falta ousadia em determinados momentos para elevar os sonhos à realidade pura e mortal.
Flutuamos no mar buscando os raios de sol que acalmam a nossa alma, nosso espírito.E enquanto está realidade for verdadeira, estaremos a salvo da rede de depressões que foi ocasionada pelo avanço da tecnologia e distanciamento do relacionamento humano. Estaremos a salvo do temeroso fundo do oceano que carrega o misterioso segredo do final de nossas vidas.
Pritilly nunca foi tão bela e tão temida.
Oscar Sint encaminhava-se todas as manhãs direto para o banheiro, depois sentava na cama de seu quarto e escrevia algumas palavras de incentivo sobre si mesmo. Corria com o casal de vizinhos Manuelle Anit e Carlos Anit, voltava para fazer o almoço e tirava um cochilo a tarde. Quando despertava, assistia alguns jogos de futebol pela televisão e a noite saía para a faculdade.
Um dia normal como outro qualquer. Chegando em casa Oscar fazia um lanche, subia as escadas, lia "Não Conte a Ninguém" de Harlan Coben até começar a pegar no sono e se convencer de que precisava dormir. Colocava o livro na estante, apagava o abajur e agradecia a Deus por mais um dia de vida antes de se perder na trilha dos sonhos.
E assim terminou segunda-feira.
Terça-feira.
Quarta-feira.
Quinta-feira.
Sexta-feira.
Sábados e domingos eram um pouco diferentes. Oscar acordava até mais tarde, por isso nunca corria aos finais de semana com os vizinhos. Tomava um café bem reforçado com direito a "besteiras" que deixariam qualquer nutricionista de cabelos em pé. Em vez de dormir durante a maior parte da tarde, assistia filmes e séries de Tv. E durante a noite ficava a maior parte do tempo estudando as disciplinas do curso da faculdade ou conversando com os pais, que moravam em outra cidade e cuidavam de todas as despesas relacionadas a moradia e estudos do filho, via skype.
Assim, mais um fim de semana de sua vida era derramado sobre o tempo como os grãos de areia da ampulheta que marcavam aquele fim.
Seus olhos verdes se abriram para o início de uma nova velha semana. Segunda-feira, o dia mais odiado por todos, não era visto com tanto pessimismo por Oscar, que começou a equilibrar-se na linha tênue da rotina desde cedo. Banheiro: fazer necessidades, escovar os dentes, tomar banho. Quarto: Arrumar a cama, sentar na cama, pegar um caderno na cabeceira e começar a escrever. Escrever. Escrever. Essas palavras ecoaram sorrateiramente em sua mente. Discretas como o sol daquela manhã.
De repente um vento frio atingiu as cortinas, que balançavam rapidamente como um fantasma, tocando levemente seu tecido no rosto de Oscar em algumas ocasiões.
Ele escreveu algumas frases e fechou o caderno. Seu olho arregalado destacava ainda mais o verde da sua íris. Virou-se para o espelho e percebeu o espanto esculpido no seu rosto.
O silêncio foi cruel ao intensificar sentimentos que afloram com uma simples curva mediante a uma extensa reta de previsões.
Previsões que não precisam de nenhuma espécie de cartomante para descobrir o seu destino.
Destino totalmente entrelaçado com aspectos da natureza que parecem ofuscar o sentido da razão.
O tempo estava passando. Nos dias da semana, Oscar nunca tomava café da manhã. Preferia fazer exercícios físicos que abririam o seu apetite na hora do almoço, e nesse momento fazer uma bela de uma refeição, com legumes e verduras, além de frutas na sobremesa.
Começou a alongar para que seus músculos estivessem em perfeitas condições na hora da caminhada.
Depois de alguns minutos, ouviu o barulho da campainha e desceu as escadas com uma garrafa de água nas mãos. Pelo vidro da porta ele podia observar o contorno de seus vizinhos de forma embaçada, andou lentamente em sua direção. Passo a passo, cuidadosamente, sem deixar a menor possibilidade de ouvir a madeira rangindo. Sua mão se aproximou da maçaneta, estava perto de continuar a sua caminhada rumo a normalidade. Silêncio, olhou para trás como se a casa pudesse estabelecer algum significado sobre a sua possível asquerosidade à surpresas. Encontrou as coisas fixadas exatamente em seus devidos lugares. A respiração começou a ficar lenta. Segurou a maçaneta. Começou a girar quando um barulho fez seu coração bater mais rápido. Soltou. Olhou para trás e viu o pássaro de madeira que saía da casinha do relógio antigo da época vitoriana instalado na sala. Um mero alarme que só havia tocado no primeiro dia em que Oscar havia dormido naquela casa. Um sinal de anormalidade.
Girou a maçaneta e encontrou os vizinhos com roupa de ginástica na porta. Saiu rapidamente da casa. O sol aqueceu timidamente a sua pele.
- Atrasado cinco minutos- anunciou Carlos Anit com sua camisa regata e seu boné de corrida- Aconteceu alguma coisa?
- Calma, Carlos- disse Oscar cumprimentando-o com um aperto de mão e Manuelle com um beijo no rosto- Eu sei que você conhece a minha paranoica mania com pontualidade, mas cinco minutos não é nenhuma mudança de personalidade com  que se preocupar.
Carlos abriu um sorriso discreto, colocando um ponto final nesse assunto. Lado a lado, os três começaram a caminhar pelas ruas de Pretilly.
Manuelle sempre reclamando dos afazeres de casa. Oscar sabia muito bem das indiretas que ela mandava para Carlos, porém esse parecia nem notar, ou fingir não notar porque todo dia era a mesma coisa. Uma hora era o cano do banheiro, outra o ferro que não esquentava de maneira adequada, depois a máquina de lavar. Uma reclamação por dia. Todo dia. Logo no começo da caminhada, e todas ás vezes Carlos reagia da mesma forma: escolhia o silêncio e derramava água sobre a cabeça.
Após meia hora de caminhada, os três resolveram parar em frente a praia. Esse era um dos momentos mais aguardados do dia para Oscar. Adorava vislumbrar o mar de Pritilly com toda a sua beleza e tranquilidade, o vai e vem das ondas pareciam uma mistura de movimentos dos quadros abstratos, sua cor azul acompanhada com a luz do sol refletia uma vibração muito mais intensa do que a cor azul do céu. E o mais importante de tudo, olhava para o horizonte como se aquela imensa obra-prima não tivesse fim. Infinita diante de sua imaginação, um verdadeiro paraíso terrestre.
- Encantador, não?- perguntou Manuelle.
- Sim. Não consigo deixar de apreciar essa linda paisagem.
- Você gostaria de apreciá-la mais de perto? Quem sabe um mergulho?
Ele levou um susto. Nunca havia pensado em mergulhar em Pritily. Sempre vislumbrava aquela beleza do calçadão. Não havia sentido a maciez de pisar naquela areia, nem de banhar-se naquela água fria e limpa.
- Vamos.- Incentivou, Carlos- Será divertido.
- Não- Tinha medo da irregularidade, das curvas da vida. Levantou-se- Preciso ir.
- Espera um pouco. Já estamos indo também, não é amor?- perguntou Manuelle à Carlos.
- Ainda está cedo- respondeu Carlos, olhando para o relógio- O que aconteceu, Oscar? Fique mais um pouco.
- Desculpa- Oscar abaixou a cabeça e continuou a caminhar pelas ruas de Pritilly.
Pegou o Iphone, encaixou um fone de ouvido e começou a escutar uma música.
Sentia vontade de se jogar na rua, de desistir dos sonhos. Virou uma rua, não encontrou ninguém. Virou outra rua e encontrou estranhos. Fez um caminho torto. A cada esquina uma nova perspectiva sem sentido, sem alegria.
Quando chegou a sua rua,começou a apressar seus passos. O tempo não parava. As nuvens continuavam em movimento, correu olhando para trás como se inimigos o perseguissem. Ou quem sabe um grande mal? Ou um grande vilão?
Parou em frente a sua residência. Vislumbrou o jardim, belo como a inconstância mas medonho também.
Girou a maçaneta. Nesse momento parecia que não morava mais ali. A sala permanecia com aquela alta tensão silenciosa.
Subiu as escadas de dois em dois degraus. Foi ao quarto e abriu o caderno que escrevia todos os dias como se ali pudesse estar escrito a fórmula da imortalidade. Todavia, se deparou com conforto. Várias frases iguais, escritas em dezenas de folhas.
Está tudo normal.
Está tudo normal.
Está tudo normal.
Contudo, Oscar sabia que não estava. Pegou um pano grande próximo a sua cama e desceu as escadas com a mesma ansiedade. Passou a mão pelo cabelo rapidamente, seus passos firmes proporcionaram um barulho ensurdecedor.
A sala continuava com aquele mesmo aspecto. Oscar podia jurar que uma pequena fumaça branca começava a se infiltrar pela sua imaginação. O relógio vitoriano continuava a encará-lo, como se ele soubesse de seus defeitos, de seus segredos.
Sem pensar no amanhã, ele jogou o pano sobre o relógio. O mundo começou a girar, seu coração começou a bater mais rápido. Olhou para os lados e não viu ninguém. Nem mesmo aquelas palavras amigas que serviam para lhe tranquilizar. Vislumbrou o vidro da porta e viu o contorno embaçado de seus vizinhos se beijando, depois ouviu o barulho de um tiro quando seus vizinhos sumiram e a sombra de uma mulher passou.
Passou como num simples passe de mágica.
- Quem está aí?
Essas palavras riscaram o silêncio e trouxeram vida a realidade. Oscar não aguentou tamanha informação, aos poucos seus joelhos começaram a pesar e sua força a ceder. Ajoelhou-se, agarrou firmemente o pano para se recompor. O mundo girando, indo e voltando como as ondas do mar de Pritilly. Sentiu vertigem, o chão de sua sala parecia feito de areia movediça. Seu corpo começou a sofrer com a ação da gravidade. O pano continuou firme em sua mão quando seu corpo colidiu com o chão. O relógio vitoriano voltou a ficar exposto e de repente, não mais que de repente o pássaro saiu de sua casa para anunciar o segundo alarme daquele dia.

O cheiro de flores despertou-lhe a razão. Lentamente, Oscar começou a se recompor. Sua pele ainda ardia de dor.
Não sabia quanto tempo havia se passado. Preocupado, pediu informação para o relógio vitoriano que anunciou vinte horas. Oscar encaminhou-se até o banheiro e jogou uma água no rosto, estava decidido a não ir mais a faculdade.
Voltou para a sala meio zonzo. O cheiro de flores continuava a impregnar o ambiente. Passo a passo caminhou até a porta, girou a maçaneta e para sua surpresa, encontrou uma garota loira, com uma faixa verde e um chapéu antigo na cabeça cuidando de seu jardim.
 - O que a senhorita está fazendo?- perguntou Oscar enquanto a moça regava algumas orquídeas.
Com os olhos arregalados, a moça ficou em pé rapidamente. Largou o regador e disse:
- Desculpa, não sabia que morava alguém nessa casa. Só estava querendo ajudar- seus olhos eram meigos e claros- Eu sou jardineira, e um dia desses vi que esse jardim estava em péssimas condições. Pensei que ninguém morasse aqui...
- Sabe de uma coisa?- perguntou Oscar pensativo- Há quanto tempo cuida desse jardim? Desde que eu me mudei pra cá ele sempre esteve tão impecável, como se tivesse vida própria. Nunca cuidei dele e as flores a cada dia mostravam uma mistura de cores tão vibrantes e perfeitas.
- Um ano. De segunda a sexta às vinte horas em ponto. Mil desculpas- disse ela confusa- Eu devia ter vindo aqui algum dia para pedir permissão, mas a vida é algo tão rápido e intenso que me perdi na vontade de ajudar um jardim que estava aos poucos morrendo.
- Não precisa se desculpar- Por isso que nunca se encontravam, nesse horário Oscar sempre estava na faculdade- Eu que preciso lhe agradecer.
- Agradecer?
- Sim. Por não ter deixado algo tão belo se perder na rotina de cada dia- A garota tinha um sorriso contagiante- Gostaria de entrar para tomar um chá comigo?
A moça pensou um pouco na proposta, vislumbrou as flores, olhou para a própria roupa.
- Não posso, estou toda suja. Acabei de sair do trabalho.
- Eu não me importo nem um pouco. Mas, se a senhorita preferir, poderíamos nos encontrar em outro lugar- sua coragem queimava como uma chama em seu coração.
Ela mordeu os lábios.
- Quem sabe às vinte e três horas no mar de Pritilly? Junto com alguns amigos? Costumamos acender uma fogueira e cantar junto com as ondas do mar.
Vinte e três horas? Nesse horário já havia saído da faculdade. Nunca estivera na rua nesse horário, nem falava com garotas encantadoras todo o dia desse jeito.
- Combinado.
Ela assentiu com a cabeça e pegou o regador.
- Então. Tchau- disse ela.
- Antes de partir, me diga uma coisa. Qual é o seu nome?
- Amanda. E o seu?
- Oscar- dessa vez ele sorriu, tentando ser sedutor. Não podia estragar essa cortesia.
- Até mais, Oscar.
- Até, Amanda.
Amanda andou em direção a rua enquanto Oscar entrava em casa , fechava a porta com força e colocava a mão em frente ao peito.
- Porque sou tão fraco?- perguntou a si mesmo. Ele sabia que não compareceria.

Vinte e três horas.
- A cada pétala de sentimento que senti. Uma mistura de querer prosseguir e de simplesmente me esconder tomam conta do meu ser. Amor que encanta, que destrói. Silêncio que magoa e dói. Mereço cada momento de solidão, de morte vivida, sem você, minha vida- Oscar dizia contemplando o teto do quarto, deitado na cama por baixo do cobertor- Garoto fraco, humilde, covarde. Naquela noite fatídica deixou o homem mascarado invadir a casa da vítima e colocar um ponto final na sua aventura. Aventura da qual nunca merecerei viver, porque era para eu estar lá, enterrado em vez de você. Meu doce primeiro amor, perdoa minhas fraquezas e minha displicência, minha mente gostaria de pensar que fosse um amigo seu, resolvi ir embora, com medo, e deixar o tiro da bala te escolher- lágrimas começaram a percorrer seu rosto- Pritilly me acolhe como um castigo, tanta beleza e encantamento que não posso tocar, beleza parecida com a sua, que me atormenta toda noite, que me causa vertigem, tontura. E o relógio continua lá na sala, pra comprovar  que naquele instante em que a bala perfurou o seu peito, era para eu estar ao seu lado. E o destino também queria nos unir, esqueci a carteira e estava voltando para sua casa para buscá-la. Porém vi aquele homem estranho e resolvi fugir. Podia ser seu parente, seu amigo, qualquer pessoa que eu vejo na rua. Mas no fundo do coração eu sabia que não era nada disso. Perdi a oportunidade de ser o herói da nossa história...
O som da campainha tocou.
Medo.
Tocou novamente.
Oscar levantou da cama, colocou a pantufa e desceu as escadas. Podia ver o contorno de uma rosa pelo vidro. Abriu a porta com ansiedade. Era ela, só podia ser.
De repente seus olhos encontraram os de um estranho com uma arma apontada na sua direção.
Os próximos acontecimentos aconteceram numa velocidade avassaladora. O bandido entrou e começou a pedir dinheiro e objetos de valor. Porém, ele não tinha. O ladrão perdia a paciência e o tempo que era marcado no relógio vitoriano avisava que os dois corriam perigo de vida.
- Vamos, pra dentro do carro- disse o cara barbudo e assustador.
Oscar saiu da casa apressado, sem nem se despedir. Olhou para o jardim que estava mais lindo do que nunca. Abaixou para pegar uma rosa e foi perfurado pelo seu espinho. O sangue escorreu pela sua pele, ele fechou os olhos e esperou o suspiro final.
Uma paulada atingiu sua cabeça e Oscar apagou.
Quando acordou, estava jogado no meio do mar de Pritilly. Podia ouvir o barulho das risadas de Amanda e seus amigos. Sentir o fogo esquentando a sua pele. A felicidade pura e indecifrável vagando pela brisa amena. Aos poucos foi desvendando os segredos mais obscuros do oceano, cada segundo mais longe da superfície.
Tão perto de salvar o seu primeiro amor e tão distante. Tão perto do sorriso de Amanda e tão distante, poucos metros os separavam, como se vida e morte pudessem se beijar!

11 de mai. de 2013

A Última História


  Como escrever o meu adeus?                                                        (Jim Warren)
  Depois de cinquenta e dois textos, chego ao final do primeiro ano do blog com a “Última História”.
  Fico pensando se todas essas palavras, essas histórias, esses contos, esses personagens... Se todo esse mundo mágico valeu a pena.
  E para minha grande satisfação, chego a acreditar que sim. Nem todos os momentos foram fáceis. Vasculhei corredores sombrios para tentar descobrir a própria essência do acaso, acendi velas que iluminaram os segredos lendários. Corri de medo, beijei com amor. Fugi da mentira. Destruí a verdade em cacos. Senti a fantasia penetrar a inexistência e descobri que posso imaginar inimagináveis situações.
  Flutuei no mundo e usei as máscaras das minhas dezenas de personagens.
  Senti ardência em meus pensamentos ao publicar cada Mensagem, viajei pelo poema sinistro de Candelabro e pelo poema de esperança chamado Conquista. Sozinho, pedi Perdão      para o Vazio. Desejei Infeliz Aniversário para os meus inimigos, no ano novo disse Dois Mil e Tudo aos meus amigos. Tentei me esconder de Zlobu naquela terrível aventura que muitos dizem que foi bom. Aliás, foi o primeiro grande sucesso do blog.
   Falei de amor em Se eu te amar e Sentimento Implacável. Fiquei sem palavras com as Lembranças que tive com Mariana, minha amada amiga. Depois disso, percorri caminhos de reflexão sobre a vida e sobre o passado, fiquei brincando com os leitores sobre o verdadeiro significado do termo “Sangue Azul’”, muito utilizado na Idade Média.
  Acabei sufocado num mundo de incertezas, tive medo, cheguei a pensar em desistir. Até o momento em que vislumbrei uma Fita Vermelha presa no cabelo da garota que trouxe Encantamentos para a minha vida e que irradiou Luz ao meu Coração Amaldiçoado. Vivi Sonhos de Inverno, ela me presenteou-me em Meus Dezenove Anos com uma Infinita Escuridão ao dizer-me que eu precisava participar do Duelo dos Amantes para conquistar a sua mão. Esse momento marcou a nossa Despedida, queria me matar com os Espinhos das flores do jardim. Ficava pensando na famosa frase “Ser Ou Não Ser”. De uma hora para outra a minha vida não fazia mais sentido.
   Sem você, minha deusa. Para alegrar as minhas noites, para beijar os meus lábios. Para dizer que me ama. Sofri uma forte angústia no peito, e resolvi compor a Serenata da Desilusão na Rua Netuno, 1993.
   A cada dia que passava, eu sentia mais falta das nossas histórias. Às vezes ficava olhando para o Espelho e me perguntava se eu era mais bonito que o “Don Juan” que a tirou de meus braços.
   Rastejei pelo chão como um homem miserável. Observei o Tic-Tac do tempo aos poucos me matar. Porém, as forças divinas foram boas ao mandarem um caminhão passar por cima do meu corpo e me destruir. Minha alma foi algemada pelo Assassino da Mente e levada para a Carruagem Invisível que me deixou Pisando no céu.
   Lá um anjo descobriu os meus pecados, e fez questão de me crucificar como O Vilão da nossa história. Condenado a vagar pela Estrada da Perdição, tirei do meu bolso uma cartola mágica que se fosse verdade, levaria a minha mente para a Lembrança dos Balões e confirmaria o primeiro ano dA Nossa Morte.
  Quero agradecer por cada frase, por cada palavra, por cada momento de insanidade. Esses cinquenta e dois textos podem ter ficado no passado, mas eles dificilmente deixarão as minhas lembranças. Pretendo guardar todos no meu inconsciente.
   
    “Eu possa me dizer do amor ( que tive):
     Que não seja imortal, posto que é chama
     Mas que seja infinito enquanto dure.”
                                                              ( Vinicius De Moraes, Soneto de Fidelidade)

11 de abr. de 2013

A Nossa Morte


 O fim. É difícil começar um texto pelo seu final, seu triste fim revelado no aroma mais doce e sensual. Penso na flor vermelha entre várias flores amarelas, imagino dois corpos pulando na piscina, submersos por sonhos detalhados e ingênuos. Esse aroma que desperta as minhas lembranças durante a noite fria, essa água que acolhe o meu corpo como se fosse um cobertor. Esse destaque que um tinha pelo outro e que se acabou.
  Quando abro os olhos durante a manhã, o universo e o sentido se perderam, na estrela cadente que sorriu e na lua crescente que se encolheu.
  Chega de palavras tristes. Chega de chorar pelo passado. Ouça o barulho do espírito querendo se libertar. Abri a porta e você não estava lá.
  O líquido da nossa amizade, do nosso parentesco distante, derramou a lágrima da cópia e fez do nosso relacionamento algo errante, e nem a fênix que prometeu renascer o nosso sorriso, ligou para anunciar o nosso tão aguardado encontro.
  E do silêncio fez se o espanto. E do esquecimento a loucura. Nem lembro mais da sua face quando procuro o álbum que marcou a nossa infância. O tabuleiro de xadrez continua no quarto, com as peças jogadas e com o meu rei triunfante, seu exército virou um fantasma, e nossas histórias algo irritante.
  Escrevo para os anjos procurando uma solução para o nosso problema. Podem ficar tranqüilos, caros leitores. Dessa vez prometo não cometer nenhuma loucura. E o meu amigo? Quem enfeitiçou os diálogos leais e verdadeiros? O que aconteceu com a juventude que não tem limite? Somos os reis do mundo? RESPONDE!
  Diga os meus defeitos lentamente em meus ouvidos. Ensine o personagem que você quer que eu seja. Prefiro interpretar alguém que não sou a quem eu sou. Interpretar a si mesmo é muito difícil. Minha alma clama por liberdade, e minha mente construída pelo mundo sangra com as mentiras.
  Olho para os céus e vejo anjos descendo com gaiolas. Corro para um santuário e me jogo na fonte do nada. Rolo pelas cores do dia do nascimento e bebo a água encantada do nosso enterro.
  Quando estou desesperado, bebendo algo sem gosto, vejo uma luz no fim do túnel e eis que surge o nosso encontro. Os meus olhos de caçador, os seus de compaixão. Os meus sentimentos beirando ódio e calor. Os seus de indiferença e frieza.
   - Parecia que nunca iria te encontrar novamente.
   - Eu tive a mesma impressão- disse ele com um tom de voz seco.
   - O que aconteceu com o laço que unia a nossa história?
   - Rompeu-se quando descobrimos o sentido de viver.
   - Não entendo. O que fazemos juntos nesse lugar?
   - Viemos morrer juntos- Ele pegou a única flor do local e a esmagou com a força das suas mãos.
   Assustado, coloquei a minha mão para proteger a luz dos meus olhos. Aos poucos comecei a me aproximar, com minhas vestes negras rastejando pelo chão. Cheguei perto do meu amigo e beije-lhe os seus pés. Dizendo baixinho:
  - Qual personagem você quer que eu seja dessa vez?
  Com medo, olhei para o espelho e vi os olhos do meu amigo. Falava comigo e era ele quem respondia. Senti meus lábios secos como se nunca tivesse bebido água na vida. Fiquei encolhido, aguardando a sentença final.
  Senti seus pés chutarem a minha cabeça, a dor incendiou as minhas fraquezas. Minhas mãos foram algemadas, meu sofrimento esquecido. Minhas vontades enjauladas.
  - Liberte-me desse inferno que é ocupar a sua mente. Deixe-me refletir os seus sentidos- Estávamos presos um no corpo do outro. Éramos um só!

23 de mar. de 2013

A Estrada da Perdição


 Quilômetros de estradas, asfaltos. Histórias contadas no carro vermelho de verão, adrenalina pura com o medidor do velocímetro e de seus corpos em sintonia que pareciam um só.
 Fumaça branca saía da boca dos sonhadores. Bebida alcoólica era apreciada como se fosse água. Sexo era diversão.
  Lilian colocava as mãos para fora do carro e sentia a vida abrindo as portas da liberdade. Nua dos pés a cabeça, Antônio já havia roubado a sua ingenuidade, sentia bocas quentes explorarem os seus mamilos. Suas sensações abstratas pareciam que iriam explodir.  
  Dedos tocavam-na no botão que ardia-lhe a mente. Resolveu fumar um cigarro e colocar a cabeça para fora do carro. Queria o impossível, queria o proibido.
   Antônio passou sua fumaça para a boca de Lilian que começou a rir.
   - Isso é tão divertido. Você tinha que ver quando eu passei para a Liza, ela não acreditou quando nossos lábios se encontraram. Quando minha língua massageou a dela com ternura, como se não fossemos amigas, e sim amantes.
  - Calma, calma- disse Antônio quando Lilian começou a tossir- O que você usou dessa vez, gatinha?
  Lilian ficou meio zonza, deitou a cabeça no peito nu de Antônio e entrou num mundo meio abstrato. Vislumbrou o azul queimando a água do interior da seca. Lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Nem o palhaço da sua infância conseguiu despertar um sorriso de alegria, só sentia liberdade, apenas liberdade. Estava livre para morrer!
  Sua respiração foi começando a ficar mais acelerada, como aquele carro que proporcionava tantas aventuras, tantas alegrias. Os seios fartos já não saciavam nenhuma língua fresca, sua fertilidade estava abandonada. Antônio, com seus músculos densos e sua barba feroz, a olhava como se ela fosse um alienígena. Todos seus colegas de estrada a observavam com um olhar de pena. Como se a liberdade pudesse tirar-lhe a vida.
  - EU NÃO VOU MORRER!!- gritou ela- EU NÃO VOU!!
  A protagonista da história mandou o motorista, Jean, parar o carro. Pegou as suas roupas no banco e começou a se vestir. Agarrou uma sacola com cocaína e tentou abrir a porta do carro, quando foi impedida pelo forte braço de Antônio.
  - Onde você pensa que vai?- perguntou ele com os olhos bravos como os de um leão.
  - Voar- disse Lilian baixinho, com as mãos trêmulas e os olhos vermelhos.
  Ele colocou os dedos em seu queixo e disse de uma forma autoritária e assustadora.
  - Você não pode abandonar essa aventura. Não vou deixá-la jogar uma história tão linda no lixo, usa o pó, usa. Cheira que você se sentirá melhor. Cheira- terminou ele gentilmente, levando o pó para perto de suas narinas.
  Lilian tirou os seus cabelos ruivos como o fogo do rosto e cheirou o pó branco. A sensação foi instantânea. Conseguiu encontrar as asas que lhe faltavam para voar. Sentiu alegria explodir do corpo pelo vício, se sentiu prisioneira aos sentimentos. Engaiolada por sensações contraditórias. Um pássaro que não podia voar.
  Podia voar, mas não podia.
  O gosto da liberdade perdeu-se por entre os lábios. As luzes da balada pareciam tristes, a multidão parecia irracional. Queria chorar. Estava rodeada de gente, porém se sentia sozinha.
   - Porque me olham desse jeito?- perguntou ela para os outros quatro aventureiros.
   Todos a contemplavam assustados.
   O carro parou, parecia que a aventura terminava ali. Os beijos calientes pareciam distantes, a amizade havia acabado. Assim como o seu suave frescor.
   Antônio colocou o dedo indicador em frente aos lábios, fazendo um sinal de silêncio. Pegou-a no colo e depositou-a no asfalto. Lilian já não conseguia sentir o seu corpo, apenas formigamento.
   - Para onde vamos meu, amor?- suplicou ela com olhos esperançosos de criança.
   - Você não vai a lugar nenhum- respondeu Antônio- A sua jornada acaba aqui.
   - E as festas, e a diversão? Eram tudo mentira? E quando você penetrou a minha alma e fez juras de amor?
   - Não passou de uma ilusão, baby. Seu corpo não passou de uma droga para satisfazer o meu tesão. Nossas conversas nada mais eram do que um incentivo para saber que a minha vida era melhor que a sua. As festas estavam cheias de pessoas que não se importam em nada com a sua vida, tampouco com o seu triste fim.
   - E o Jean, a Sara e o Francisco? Eles também não eram meus amigos?
   - Não existem amigos nessa vida. Vivemos num mundo predatório. Cada um por si tentando satisfazer o seu desejo. Somos objetos, peças de calor humano, pedaços de carne que se acham importantes. Mas não somos ninguém. Nossa vida é um lixo, a liberdade é um lixo. Tenho inveja de vê-la morrer.
  - Morrer?- perguntou ela assustada- Eu não vou morrer!
  - Não se preocupe, amor- disse ele apaixonado- No final essa é sempre a solução!
  Antônio pegou um isqueiro no bolso, acendeu-o e estendeu o seu braço para que a chama pudesse beijar os cabelos ruivos de Lilian, que estava pálida e seca de terror, de desilusão, de drogas e decepções. Podia sentir o fogo consumindo o seu corpo que dançava com tanta fantasiosa alegria. Seus olhos que despertavam os pensamentos dos rapazes, os mesmos olhos que causaram extrema felicidade ao serem contemplados por seus pais.
   A chama que um dia sorriu, que um dia chorou. Os gritos de agonia, semelhantes com o sopro que lhe trouxe a vida na maternidade. O primeiro momento de tristeza, onde o mundo parecia cheio de armadilhas e assombrações. O primeiro momento de alegria, onde o mundo parecia encantado e cheio de diversões. Os amigos que mostravam tanta confiança, os inimigos que demonstravam tanto desprezo. Os ensinamentos...
   A estrada da perdição parecia um caminho sem volta. Uma falsa sensação de conforto. Beber cerveja para se sentir feliz. Fumar para poder voar. E a vida continua oca como se não tivesse quem amar.
   O fogo começava a destruir as ideias da sociedade, assim como a pele de Lilian, encolhida com a dor que a transformava em cinza e fumaça. Seu corpo aos poucos virava pó, o seu rosto já era beijado pelas chamas, assim como o seu corpo, abraçado pelo calor.
  Antônio, com os olhos rodeados de escuridão, via tudo perplexo. Lilian parecia querer se vingar com a altura do fogo que parecia dançar de tortura. A alma livre para mergulhar em águas profundas e filosóficas sobre o real motivo da nossa existência.
   Todo esse texto corrido e torto. Toda essa história aos olhos de Antônio. Todo esse horror descrito em palavras tristes. Aos poucos os personagens dessa história perdiam o sentido, beirando a infantilidade e confusão. Alguns andando pela margem do rio da inexistência, outros eram tão reais quanto algumas revelações.
    A paisagem começava a escurecer. Antônio não conseguia mais observar o fogo que atormentou a sua fria razão. O coração do protagonista começou a bater mais forte, mais forte.
  TUM, TUM, TUM...
   O blecaute chegou a tranquilizar um pouco o seu coração.
  E depois das trevas veio a salvação. A luz atingiu os seus olhos, a realidade batia na porta da sua compreensão.
  - Amor- disse Sara que quando viu que o marido havia acabado de despertar, sentou na beirada da cama e beijou-lhe os lábios- Não se esqueça do nosso compromisso ás 15 horas no Blue House- Ela acariciou gentilmente os cabelos de Antônio, fez um rosto de ternura, depositou-lhe mais um beijo e saiu do quarto.
  Lentamente, Antônio foi para o banheiro e lavou o rosto. Estava exausto, parecia que havia vivido uma aventura cheia de perigos. Ficou debruçado na pia, confuso. Sua mente começou a vagar pela reflexão. Uma tremenda dor de cabeça começou a se manifestar.
  O barulho do seu celular tirou-lhe do devaneio. Pegou o aparelho numas roupas suas jogadas no chão do banheiro. A mensagem era de um número desconhecido.
  “ Ás 20horas na Praia da Salvação. Te amo muito. L”
  Antônio apertou o celular com força, foi para a varanda do quarto de roupão e atacou o aparelho na piscina com a maior força possível.
   Voltou para o quarto e começou a procurar uma maleta desesperadamente. Olhou por baixo da cama luxuosa, fechou as cortinas, trancou a porta e começou a mexer no armário. Logo encontrou uma maleta com senha, de executivos. Colocou o objeto sob a mesa e virou os números para colocar a senha 1809.
  A mala abriu, e vários sacos com um pó branco apareceram diante da sua visão.
  Fechou os olhos e uma dor no peito demonstrou a sua decepção. Era tudo verdade. Sentou na cama e colocou as mãos sobre o rosto num sinal de lamentação.
  Levantou-se e começou a pegar algumas roupas no armário, vestiu-se rapidamente com as mãos trêmulas. Nesse momento seu mundo começou a girar. Antônio ficou tonto, sentia o chão instável e caiu. Quando seu rosto encontrou o chão, ele havia apagado.
  
  Blue House, 16 horas
  - Porque demorou tanto?- perguntou Sara assustada. Quando olhou mais atentamente para Antônio, soltou um grunhido e perguntou- O que aconteceu com o seu rosto, querido?
  Com uma respiração rápida e com voz de doente ele respondeu:
  - Bati no armário do nosso quarto. Desculpa filhos- disse ele virando-se para os dois garotos pequenos do outro lado da mesa- Papai estava com uma dor de cabeça terrível.
  - Liguei para você várias vezes- Sara estava assustada- Porque você não respondeu?
  - O Sérgio me ligou, tive que ficar discutindo vários assuntos importantes do escritório.
  Antônio sentou ao lado de Sara. Ele ficou observando o filho brincando com a batata frita com ketchup, fingindo que ela era um avião.
  - Desculpa, Tony. Francisco e Jean não paravam de reclamar de fome, acabei pedindo um lanche para os dois.
  - Não precisa se preocupar, Sah. Vou pedir um lanche ali no balcão. Você me acompanha?
  - Lanche, Tony? Não somos mais crianças- Com a voz enrolada, grossa e com os olhos arregalados ela continuou- Eu sei a verdade.
  De repente o brilho dos olhos do protagonista se apagaram. Um vento gelado atingiu a sua pele. Começou a observar tudo em câmera lenta. A “batata avião” lentamente indo para a boca de Jean, Francisco piscando os olhos e com uma gota de suco no canto dos lábios e Sarah que o olhava atentamente.
  - O que você disse?- perguntou ele, intrigado.
  - Nada. Só estou aguardando a sua decisão. Vamos ou não vamos comer lanche?
  - Já volto.
  Antônio caminhou até o banheiro masculino iluminado por uma luz azul. Quando entrou viu que não havia ninguém. Apalpou o casaco e encontrou um saco plástico. Entrou na cabine e depositou um pouco de pó branco sobre a mão. Cheirou e depois olhou para o teto.
  A sensação era intensa e angustiante, queria mais e mais. Mas não podia.
  Jogou o resto do conteúdo no sanitário e apertou a descarga. Saiu da cabine e olhou os olhos vermelho no espelho. Não era mais ele, não era ninguém. Jogou água fresca no rosto.
  Voltou para a mesa onde estava a sua família e disse:
  - Preciso ir, estou com uma dor de cabeça insuportável. Desculpa.
  -Espera- Sarah agarrou a sua manga antes que ele pudesse escapar- Eu te levo para o hospital. Os meninos estavam tão ansiosos por esse momento. Não estrague tudo novamente. Por favor- ela implorou.
  - Preciso ir, preciso ir- finalizou ele rapidamente.
  - Por favor- gritou ela, e uma lágrima despertou de seus olhos.
  - Preciso ir, preciso ir.
  Ela largou o seu braço, como uma criança abandona o seu brinquedo. A luz azul se apagou.

  Praia da Salvação, 20 horas
   Quando viu aquela mulher com os cabelos de fogo encostada no poste. Antônio não tinha a menor dúvida.
   - Lilian- disse ele. Ela virou-se e ele teve certeza que era ela, que abriu um enorme sorriso.
   Seus cabelos em chama, sua boca impecável e sexy. Lembrou-se dos momentos em que passavam na cama, onde seus lábios podiam engolir os dela, seu membro vil e duro penetrava aquele corpo lindo e escultural, que implorava por prazer. Aqueles sussurros, aqueles pecados. A língua que esquentava a sua pele e que lhe causava arrepios.
   Ela começou a se aproximar, e ele se esquivou.
   - O que você quer?- Seus olhos escuros como os de um leão.
   - Voar- disse ela alegremente. Colocando o seu corpo em contato com o dele.
   Lilian ficou com os seus lábios bem próximos dos de Antônio. Podia sentir seu hálito quente e sua respiração lenta quando largou a sedução e começou a correr de encontro ao mar.
  Antônio percebeu a armadilha e correu rapidamente em direção a mulher que lhe causava transtornos e confusão. Alcançou-a facilmente, derrubou-a e os dois se enroscaram na areia. Até que ele ficou por cima dela e perguntou:
  - Porque você fez isso comigo?
  - Isso o que? – perguntou ela com os olhos surpresos.
  - Matar a minha vida. Mostrar os meus vícios. Explorar o que há de pior em mim.
  - Você está louco? Foi você que me seduziu. Que me levou para o mundo do vício. Foi você que abusou da minha ingenuidade, que tirou a minha pureza, a minha bondade. Que despertou a minha escolha pelo mundo sombrio da diversão, da liberdade, da incoerência.
  A lua no auge iluminava a realidade do momento. O som da maré causava aflição para as respostas do final da história. O amor foi levado com o vento, o encanto se fundiu com a lua e se perdeu no espaço. Mas ainda havia luz.
  - E você acha que os leitores irão acreditar em você ou em mim? – perguntou Antônio com ferocidade.
  - Eles vão acreditar naquilo que eles querem acreditar. Eu sei que você me matou. E eu também sei quantas pessoas morreram em momentos decisivos. Você já imaginou a garota que eu seria se não o tivesse encontrado? Poderia ainda ter o amor dos meus pais, trabalhar como qualquer um, ser independente de vícios. Ser feliz!
  - Nós dois sabemos que buscar a felicidade a todo momento não passa de ilusão- E ele a beijou com força.
  Lilian mordeu-lhe os lábios e lambeu o seu sangue.
  - Espero que dessa vez você não tenha um isqueiro por perto para tentar me matar- disse ela ofegante.
  - Claro que não. Não sou capaz de matar ninguém.
  Lilian levantou-se e tirou um revólver do bolso.
  - Mas eu sou.
  Antônio tentou se levantar, mas Lilian atirou no seu joelho.
 - Você está louca? Vai acabar me matando!!
 - Você me matou primeiro.
 - Confessa, foi você que criou a estrada da perdição. Sou apenas um fantoche na sua história.
 - Não fui eu!- gritou ela. Nós dois sabemos.
 - Foi você- disse ele cuspindo- Eu e todos os leitores sabemos. O meu sonho. Foi tudo uma invenção. Você era eu na história e eu era você. Sou um fracasso, tenho uma família. Meus sonhos foram afogados no momento de tristeza que eu te conheci.
 - Cala a boca- Disse ela chorando.
 Antônio aproveitou a oportunidade e chutou-lhe a arma da mão. Socou a rosto de Lilian e correu para pegar a arma. Com sua agilidade, consegui pegar o revólver antes da mulher com os cabelos de fogo. Apontou-lhe a arma e disse:
 - Você estava certa. O sonho estava certo!- seu olhar mostrava frieza- Eu, um pai de família, sou viciado em drogas, em sexo. Espalhei o mal para diversas pessoas na estrada da perdição. Mudei de identidade nas luzes coloridas das baladas, nas festas. Criei a minha própria sepultura, o meu próprio vazio porque carrego a tristeza do infinito e a incompreensão do divino. Sou viciado em pecado, quero errar e acertar. Quero ser um canalha e um pai de família. Quero viver morrendo.
  Dois disparos foram o suficiente para levar o sopro de vida da mulher do fogo.
  Antônio começou a cavar um buraco na areia e depositou a arma onde ninguém nunca pudesse descobrir seus segredos, apenas o nobre leitor.
  De repente uma ideia maior que a sua razão começou a enrijecer o seu membro. Tirou rapidamente a roupa e começou a tirar as de Lilian. Seus dedos começaram a cutucar o buraco da morta, e seu membro começou a perfurar os segredos de uma jovem ardente. Começou a fazer sexo com o seu próprio pecado, com o seu próprio vício. Nunca havia ejaculado tanto, com tanto gosto, com tanto fogo, com tanta vergonha. Era um verme, tinha certeza, era um animal. Assim como os seus vícios irracionais.
   Os dois sabiam desde o começo que aquele encontro era para matar o vício de um deles. Antônio havia saído derrotado. Arrastava o corpo de Lilian para o mar, tinha a oportunidade de apagar a última chama do vício, e essa oportunidade ele não podia perder!
   O corpo de Lilian foi acolhido de braços abertos pelo mar.Antônio ficou ali, vendo uma história se perder no horizonte.
   Voltou pela estrada da perdição para casa. Entrou no apartamento e abriu a porta do quarto dos filhos. Ligou a luz do abajur que era azul e a iluminação mostrou que não havia ninguém. Apalpou o corpo e estava seco. Apalpou o joelho e não havia nenhum sinal de tiro. Foi para o corredor e entrou numa porta iluminada por várias luzes coloridas. Viu várias pessoas bebendo e rindo, conversando e rindo, dançando e rindo. Ficou ali, paralisado. Parecia que estava sozinho!