23 de ago. de 2013

O Começo e o Fim

"Fiquei marcado pelas lições aprendidas ao longo do tempo, parece que a cada dia eu consigo compreender melhor o mundo e as pessoas. Nossos erros, nossas virtudes, nossas diferenças e igualdades".


  Leila Satykova espiava pela fechadura da porta, queria observar de perto os segredos humanos. Mais perto, mais perto via nossas fraquezas e nossas habilidades. O barulho dos beijos ardentes e o do tiro devastador. Um grito de alegria e outro de horror. Seus olhos acinzentados ficavam esbugalhados com as novas revelações, o coração palpitava de angústia e desilusão, sentia asco das relações humanas. Não podia ficar nem mais um minuto vislumbrando a mistura da gélida razão com a animalesca emoção do homem.
  Decidida, Leila ficou de pé e contemplou a bela porta vermelha aumentar o seu tamanho diante dos seus olhos. Não podia sentir nojo de si mesma, girou a maçaneta e correu pelo universo a procura de uma vida mais perfeita que a humana.
  As estrelas iluminaram o seu caminho como a tochas iluminavam os exércitos da Idade média. A lua cantava uma música esplêndida parecida com os poemas dos poetas que ficavam divididos entre o amor e a solidão. O sol mostrava toda a sua soberania assim como os monarcas absolutistas que concentravam o auge do seu poder na Idade Moderna.
  Leila ficou perdida com tanta semelhança, a Terra parecia um espelho do universo, logo percebeu que aquela relação era natural e pura, o universo dotado de hierarquia, uma hierarquia que o próprio homem criou. O universo submerso em mistérios e a Terra mergulhada em soluções.
  O esclarecimento das suas dúvidas gerou um peso na sua consciência, Leila não conseguiu alcançar outros planetas, estava caindo em meio as nuvens que não podiam sustentá-la. O tempo passou rápido e o seu corpo atingiu uma árvore. Ficou triste com a bela paisagem, queria colocar em prática todo o seu sofrimento. Ainda estava viva, ainda estava viva!!! Jogou-se dos galhos e rastejou pelo gramado até a lagoa azul e imortal, colocou a sua mão sobre a água, porém uma camada de vidro a impediu.
  Ciano desbotava da tela. Pincéis tentavam impedir a sua morte, mas Leila fugia, fugia da tela mística e doce. Correndo sobre as águas inexistentes, o chão azul. Até o momento em que sua velocidade se desvencilhou das cores do quadro.
  Com muito esforço, o mundo das aparências foi deixado de lado perante a realidade.
  Leila encontrou três janelas douradas num cômodo circular e vazio construído por rochas.
  Na primeira janela uma mulher fazia relação sexual com uma máquina diante de raios de sol e da falta de luz.
  Na segunda janela um homem chorava incessantemente como uma criança, algemado por seus antepassados com armas. Seguindo diariamente os mandamentos que proporcionavam a sua destruição.
  Na terceira janela Leila viu a si mesma. Uma criança e uma mulher. Tudo e nada passavam no córrego da morte. Ouvia gritos dos assassinados, das mães que enterravam os filhos e dos filhos que enterravam os pais. Lágrimas eram derramadas de raiva no rosto triste de injustiça.
   Com vergonha, Leila escondeu suas partes íntimas com terra, depois se cobriu com flores e deitou na cova rasa. Queria morrer. Queria morrer, mas não conseguia.

16 de ago. de 2013

Uma xícara de chá

Emma assoprou com força, mas mesmo assim o líquido fumegante quase queimou a sua língua.
Thelma, sentada com um vestido preto de renda estava com as pernas cruzadas e com um sorriso no rosto marcado por dezenas de plásticas.
As duas estavam frente a frente, sentadas confortavelmente em cadeiras fabricadas com madeiras obtidas ilegalmente na floresta Amazônica.
- Está muito quente, querida? – perguntou Thelma com seu sorriso peculiar.
Emma colocou a xícara de volta ao pires, limpou os lábios com um pano de seda e pegou uma colher de sopa para mexer o chá.
- Nada que não possa ser contornado com um sopro ou seus luxuosos talheres.
- Sempre tão gentil.
- Aprendi com você – piscou Emma e depois de alguns segundos perguntou- E como está George?
- Trabalhando, como sempre. Ele sabe que precisa de muita sabedoria para criar uma família com tantos privilégios como a nossa.
Com as duas mãos tampando a boca, Emma sentiu vontade de rir.
- Desculpa, Thelma. Mas ouvi dizer que George está passando algumas noites na casa de praia em Honolulu.
Thelma levantou-se e passou as mãos levemente pelas pernas.
- Mais chá?
- Não. Obrigada.
- Eu e George sempre vamos passar algumas noites em Honolulu. Não vejo nada de importante nisso. Já David, depois que se aposentou dos gramados, parece estar sempre presente nas festas noturnas de Ibiza.
Emma quase engasgou com o chá, sua xícara quase se espatifou no chão.
- Querida, os nossos maridos precisam suprir certas necessidades- começou Thelma- Nós não devemos nos prestar a certos serviços. Seria muita futilidade. Por exemplo, David foi um astro do futebol, milhares de mulheres sonhariam em conhecê-lo, e ele gostaria de aproveitar um pouco do carinho dessas fãs. Se ele ficasse totalmente restrito a vossa relação, o casamento seria uma infinita amargura para ambas as partes.
- Não, Thelma. Não sou igual a você. Não posso aceitar.
A mulher de vestido preto se aproximou de Emma e pousou a sua mão gentilmente sobre a dela.
- Não precisa aceitar, basta esquecer.
- É o que você faz?- perguntou Emma.
- Sim, é o que eu faço- Thelma começou a se encaminhar para as portas que davam acesso ao Jardim de Inverno vendo os raios de sol despertarem da tarde fria- Tudo na vida tem um preço, e esse é um preço justo a se pagar.
- E se David não fizesse nada disso? E se ele quisesse manter a sua fidelidade aos votos que ele cumpriu em pleno altar?
- Eu diria que azar. Não há nada pior do que um homem fiel, que espera atitudes suas que nunca serão realizadas. Ele começa a perder o encantamento por você a cada dia. Porque não somos rainha e princesas, temos defeitos costurados pelo tempo que nos separa. Quanto mais distante melhor, porque assim conseguimos esconder as fraquezas que permeiam a nossa alma. E nossos reencontros fortalecidos pela saudade podem transformar a nossa relação num pequeno conto de fadas.
Emma levantou-se pensativa e admirou as obras na casa de Thelma, não podia acreditar no veneno que ela despejara sobre o seu exemplar marido.
- Que bonito esses bonecos de pano- Emma tentou mudar um pouco de assunto.
- George trouxe da Indonésia, foram feitos por crianças.
- O país recebeu várias denúncias sobre exploração de trabalho infantil nos últimos anos, parece que até grandes multinacionais estão envolvidas.
- Não nos recrimine, querida. Se nós não comprássemos, outras pessoas comprariam. E pensa pelo lado bom, pelo menos eles estão ganhando dinheiro para sobreviver.
Emma voltou a sentar, não queria discutir sobre trabalho infantil com uma pessoa que não ligava a mínima para os problemas sociais. A história de seu marido perturbava-lhe a mente.
Thelma voltou com os seus anéis de diamante para frente da mesa, com sua cara dissimulada e bondosa perguntou:
- Mais chá?
Fumaça saia pela chaminé.

1 de ago. de 2013

Castigo

Esperando o tempo passar. Procurando a foice que rasgará silenciosamente minha pele, mostrando uma gota de sangue escorrendo por meu pescoço. Quente, humana. Sem esperança. Jogado no abismo da infinita escuridão, onde vozes se perdem no grito de dor, e imagens se produzem na beleza do fim.
Mergulhado em pensamentos ruins tento produzir a tristeza que irradia meus olhos escuros. Sei que perdi, a última chama se apagou com o pecado que cometi.
Não vejo luz, não vejo salvação.
Fico deitado com o cigarro na mão, produzindo fumaças em forma de monstros. Sozinho. Sozinho procurando entender onde me perdi, onde a maldade se expandiu.
Raios demonstram flashes assustadores. Nunca mais conseguirei dormir.
Nesse momento, em que o mal do cigarro contamina o meu pulmão, uma mulher chega para terminar o serviço. Não se enganem, não é nenhum anjo daqueles poemas tristes, mas sim uma serva pronta para realizar a sua tarefa.
Com um simples olhar, reconheço seu jeito sedutor. Antes de me levar para o inferno, seus lábios lambem o sangue que escorre por minha pele lentamente como se estivéssemos tendo alguma cena de amor.
Fico ali, inerte.
Esperando o golpe fatal.
Até o momento em que uma de suas facas acerta meu coração. Que aos poucos começa a parar de bater. Medo.
Vejo seus seios nus. Seus lábios gosmentos. E o mundo gira, gira com gritos de piedade não atendidos. Gira, gira com risadas maldosas.
E... Para.
Estou em meu corpo, mas não posso me mexer. Não enxergo, não escuto, não falo. Mas penso.
O pior de tudo. Sinto.
Porque quando corpos me seguram e me colocam no caixão, tento gritar pedindo ajuda. Porém, não consigo me mexer, não consigo falar. Sou eu contra a minha mente até a eternidade. Perdidos no escuro, pagando pelos pecados de matar alguém.
Depois de um tempo não me aguento, começo a querer parar de pensar, deixar de existir. Só que sou castigado, não tenho escolha.
Quando o enterro termina, insetos começam a invadir o caixão. Continuo sentindo suas patas inundarem a minha pele, entrarem pela minha boca e eu não posso fazer nada. Castigo, bem-vindo.
Tento lembrar coisas boas, porque já amei.
Penso em flores, porque já fui romântico.
Penso em risadas, porque já tive família.
Penso em bola, porque já tive diversão.
Penso em abraços, porque já tive amigos.
Penso em beijos, porque já tive amor.
Penso, penso, penso. Vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trinta e um dias por mês e dois mil e treze anos até o fim de tudo.
Penso porque não escolhi o bem.
Penso porque acolhi o mal.
Penso, penso, penso em dormir.

Penso em não pensar e penso em recomeçar!