20 de set. de 2014

Mensagens 3

"Quando os últimos raios de sol sumirem do horizonte, sentaremos a luz da noite na sala de jantar iluminados por velas presas ao candelabro. Sorrio entre sombras e luzes diante da carne morta. Ela fecha os olhos e entrelaça as mãos, pronta para começar a reza. De repente um vento invade a janela e apaga chama por chama. No escuro, escuto os sussurros."


" Estou farto de suas promessas vazias, de seus pensamentos intolerantes, de suas mentiras. Não consigo mais aguentar seu peso, seus laços familiares, seus beijos, seu amor."

" Atravessei a janela do seu quarto durante a madrugada. Pego de surpresa, vejo você dormir na cama docemente. Sob a luz da lua, tenho a certeza de que nunca havia visto tamanha beleza. Os cabelos encaracolados e dourados como o sol repousam levemente sobre os ombros nus.
  Chego mais perto e beijo seus lábios, frios como uma pedra.
  Abro sua blusa e apalpo seus seios fartos, parados.
  Acaricio seu cabelo, passo a mão pelo seu corpo, sem restrições.
  Depois volto à janela. Nunca tinha visto algo tão belo, tão gracioso, tão natural, tão calado. Nunca tinha visto algo tão morto."

" O sabor do tempo despeja o gosto amargo por meus lábios rachados. Sei que a chama da vida aos poucos se apagou, como numa dança antiga repleta de holofotes.
  Quando abro os olhos, vejo o futuro em seu mais íntimo carmesim. Os olhos de uma garota, que sorri e chora, por último, me beija.
  Passa a hora, estamos nus. Transando sobre as folhas secas do outono, beijos quentes no inverno, peles nuas durante o verão.
  -Eu posso te preencher- falo baixinho parecendo um sussurro.
  Nossas peças se encaixam como num quebra-cabeça, não quero vencê-la, não posso vencer.
  Pra frente e pra trás, parece que estamos num barco em meio a tempestade, sofrendo com o vai e vem das ondas do mar.
  De repente chega o clímax, não vou mais suportar, o desejo chega a fase extrema.
  Depois chega o vazio.
  A razão.
  A vergonha.
  Sinto que estou perdido.
  Sinto que estou só."
 

Natureza Bucólica

 Ao sabor do vento
 Ciprestes encantados
 Ventos de correntezas
  Correm, correm
  Repletos de incertezas.

 Beijo verde outonal
 Cavalo branco distante
 Lábio refletido no espelho
 Melodia gritante.

 Folhas do amanhã
 Chave do meu amor
 Sangra com a rosa
 Derramando minha dor.

 Um milhão de sóis
 Girando no universo
 Entre planetas desabitados
 Paralelo mundo inverso!

 Lindo sol apagado
 Desprovido de esperança
 Sorria domingo à noite
 Ajude a velha criança.

 Brilhe durante a sombra
 Sonhe durante o dia
 Natureza, natureza
 Viva, vida!

16 de set. de 2014

Mademoiselle Daisy


 Imagem: Carey Mulligan no filme "O Grande Gatsby"

   Sob a luz do luar, o cavalheiro Lorde Harrison tirou um disco empoeirado do LP e colocou no toca-discos, abaixou a agulha e Wake Up Alone de Amy Winehouse ecoou pelo quarto elegante de bilhões de metros quadrados.
 Seguindo o ritmo da música, seus pés começaram a se movimentar como numa dança a dois.
  Podia sentir o cheiro de Madame Daisy naquele primeiro encontro. Os dois sobre a ponte de Edimburgo em meio à lua cheia. Estavam tão   próximos, estavam tão distantes. Vislumbrava seu sorriso, sua graça. Os olhos transmitiam mil e uma verdades. Eram apaixonantes, pensou ele.
   - Está frio- sussurrou ela aquele dia, diante da magia das cidades escocesas.
   Lorde Harrison agarrou sua luva de pelica branca e levou-a ao rosto, junto com o anel de brilhante mais irradiante que o luar.
   - Pegue minha jaqueta- ele tirou-a rapidamente e colocou sobre os ombros nus de Mademoiselle Daisy.
   Seus olhares se encontraram como dezenas de bolas de fogo que enfeitiçavam o céu. Os olhos de ambos eram escuros. Os dela como uma pedra, os dele como carvão.
   - Obrigada.
   Depois tudo se foi como num passe de mágica. A carruagem de sua família chegou para tirar-lhe de suas garras, de seu amor, até aquele dia.
   Mensagens foram trocadas ao longo de toda a semana. Poesias, elogios e, sobretudo saudade, contornavam cada palavra escrita.
   A música estava quase no fim, levando o jovem Harrison ao presente. Diante do espelho observava atentamente quais atributos conseguiriam conquistar Lady Daisy. Seriam seus olhos bondosos? Seu sorriso sapeca ou seus traços hereditários?
  Foi ao closet e pegou seu macacão cor mostarda, ele sempre estava reservado para as melhores ocasiões. Junto com a gravata-borboleta azul-escuro.    
  Pontualmente às vinte e uma horas, Lorde Harrison desceu pelas escadas de mármore até a sala de jantar, iluminada a luz de velas. O garçom já estava devidamente posicionado. Os ponteiros do relógio central do século XIX não paravam de girar. Voltas e mais voltas, de repente se sentiu tonto, perdeu a conta. Até que no meio de certo devaneio com seus piores pesadelos, a campainha soou alarmante. Em vez de um, foram três toques apressados. Ininterruptos.
  Lorde Harrison prestou atenção à posição dos ponteiros. Vinte e uma e vinte minutos.
  Quando ela entrou, os mil e duzentos segundos de atraso se perderam em meio à tamanha confusão. Teve certeza que era impossível odiá-la.
  Um chapéu amarelo, com uma margarida presa ao centro, cobria-lhe os cabelos dourados que caíam até o queixo. Um vestido preto e brilhante revestia o corpo magro e esguio. A sua elegância a cada passo, seu olhar tão meigo, suas palavras doces. Estava praticamente hipnotizado enquanto ela se aproximava.
   Meu Deus. Ele se levantou e seu lábio encontrou o rosto macio de Miss Daisy.
   - Bem-vinda – arrastou uma cadeira para que ela se senta-se e depois empurrou- Não sabe a imensa satisfação que eu tenho em recebê-la.
  - Primeiro gostaria de me desculpar pelo atraso- pronunciou em meio a um discreto sorriso- Depois gostaria de agradecer o carinho. Parece tudo tão levemente organizado e preciso. Deslumbrante como as três luas que reinam no céu. Não sei se mereço tamanha cerimônia.
   - Não deixe de apreciar o valor que tem.
   - Seria impossível, Lorde Harrison. Se eu apreciasse não seria digna de superação. Apenas de reparação.
   - Não consigo ver como um anjo pode ser mais perfeito.
   - Um anjo sem asas- completou Lady Daisy- Cuidado! Posso ser um anjo caído- e arregalou os olhos.
   Os dois caíram na gargalhada dos ricos. Nada espalhafatosa. Fina e elegante.
   O garçom começou a colocar vinho na taça de Madeimoselle Daisy. Quando chegou a metade ela disse:
   - Obrigada. Não quero beber muito.
   A taça de Harrison ficou cheia, mas não até a boca.
   Os dois brindaram. Nada específico, já tinham muita coisa na vida. O simples fato de brindar era o mais importante. O contato das taças, o tim-tim.
   Um gole foi o suficiente para esquentar a garganta. Daisy girava a taça em sentido circular e depois cheirava o vinho, sentia o seu aroma.
   - Sinto o odor da vida fácil. De sua grandeza, essência.
   - Vida fácil. Isso existe?- sussurrou para ela com a mão próxima a dela, seus olhos pareciam hipnotizados.
   - Quem sabe? – suspirou.
   Os dedos dele vagarosamente foram de encontro à mão de Mademoiselle Daisy, atraídos como um imã, suas peles se tocaram e ele pode sentir o calor que emanava daquele tecido fino, que escondia as veias que bombeavam o sangue de seu delicado coração.
   Enlouquecido, ele segurou a sua mão com força.
   - Preciso te fazer uma pergunta.
   Os olhos de Daisy brilharam.
   - Sim! Diga- respondeu entusiasmada.
   Uma voz em seu interior dizia: “Não coloque tudo a perder. Seu idiota. Mais uma vez enfiando os pés pelas mãos. Calma, tudo vai dar certo”
   - Você gosta de Chicken Pie? – vomitou as palavras da forma mais rápida possível. Acabou notando certo desapontamento. Será que coloquei tudo a perder? Pensou- É que tivemos um probleminha com o outro prato. A nossa planta carnívora resolveu fazer um lanchinho algumas horas antes de você chegar.
   - Gosto sim. Não tem o menor problema.
   O garçom colocou os pratos na mesa.
  - Parece estar saboroso- disse Daisy com água na boca.
  - Prove! Para comprovar a sua incerteza- seus pés se tocaram por baixo da mesa.
  - Hm. Sua planta carnívora merece muitos agradecimentos- disse enquanto limpava os lábios no guardanapo- Está uma delícia.
  Os segundos passaram com mística em pleno inverno. As risadas ecoavam, os olhares brilhavam, o assunto brotava de todos os cantos, prontos para serem semeados com um pequeno gole de vinho. Algumas chamas se apagaram quando Lorde Harrison teve um grande ideia após o jantar. Levou Mistress Daisy até o salão de música.
  Com o teto aberto para o mundo. Os dois podiam apreciar as estrelas da noite enquanto dançavam colados. Bolas brancas flutuavam pelo cômodo como num rico sonho. O pianista, funcionário de Lorde Harrison, tocava músicas lentas e apaixonantes.
  Próximos. O rosto de Mademoiselle Daisy encostava-se ao pescoço de Harrison, que de vez em quando se curvava para que os dois ficassem do mesmo tamanho.
   - E agora? O que você espera? – perguntou ele baixinho.
   - Do futuro?
   - Não. Do presente.
   - Não tenho tempo para pensar- disse ela entre risos- Quem sabe ele não me surpreenda.
   Sem querer Lorde Harrison pisou no pé da jovem dama.
   - Opa. Desculpa. Isso não foi programado.
   - Nem a noite bela e perfeita? Parecia detalhadamente planejada.
   - Não com tamanha perfeição- murmurrou em seu ouvido.
   No meio da dança, girou o corpo de Daisy. Os dois pareciam distantes por uma fração de segundos. Depois seu braço a puxou de volta para seu calor.
   Primeiro veio à permissão com o olhar. Depois levemente veio a coragem, em seguida o beijo.
   Os lábios se esbarraram e se abriram. Fogos de artifícios pintaram o céu das mais variadas cores. Os corações batiam com maior pressa, anseio. Sentiam-se frágeis, vulneráveis. O tempo era eterno, dançava sem desperdício, sem razão, sem pressa. Unitárias emoções transbordavam pelos pensamentos de fumaça prateada. Nessas horas, não consigo fazer uma rima que remete tamanha realização. O reflexo da lagoa prestes a ser congelada ou o ar rarefeito da colina mais alta do mundo ficavam apenas no cartão postal. O mais importante era fotografar o salão, aquele átimo inesquecível, pronto para se acabar.
  - Então- disse ele com lábios manchados de batom- O que diria do passado?
  - Não consigo pensar no passado sem antes pensar no futuro- E beijou-lhe uma, duas, três, quatro vezes. Beijos eram desperdiçados pela ampulheta do tempo. Cada um menos especial que o outro. O primeiro imbatível e perfeito.
  Sabe, não ligarei se é o primeiro ou último, desde que seja com Mademoiselle Daisy, pensou Lorde Harrison.
  - Consegue pensar num futuro ainda mais incrível? – perguntou madame Daisy.
  Lorde Harrison fechou os olhos.
  - Imagino um casal de mãos dadas. Fazendo confissões, próximos a lareira num dia frio, com os corpos cobertos durante a noite. Os músculos preparados para acalentarem o amor da madrugada. E um dia se passou, e outro e mais outro como as folhas do outono que caíam da macieira. Corriam pelo parque esverdeado, pelo sol do verão. E de repente o fruto do amor, o primeiro filho, correndo pelas escadas, fazendo bagunça. E mesmo mediante o caos, o casal continuava feliz, porque não seria uma mera briga ou um pequeno obstáculo que eles não iriam superar. Depois veio o segundo, o terceiro o quarto filho. Os problemas cresciam de forma exponencial, contudo a noite infindável permanecia repleta de amor.  Envelheceram juntos e bem, saudáveis de amor. E quando ela perguntou para o marido, beirando os setenta anos, o que havia achado do passado, ele respondeu com um leve suspiro: No passado podia imaginar um futuro belo, mas não com tamanha perfeição. A vida foi gentil, e o passado rejuvenescedor. O futuro, quatro sementes e mais a brisa gelada de mais uma manhã.
    - Nesse futuro cabem duas pessoas de carne e osso?
    Lorde Harrison abriu os olhos e despejou seu charme.
    - Só se for nós dois. Nenhuma pessoa pode escrever uma história de outra. Nessa elipse que habitamos, falta um pouco de coragem e de imaginação.
    Nesse instante, um pernilongo rosa, que rondava pelo salão, morde o pescoço da Madeimoselle e sai voando em busca de destruir outro amor. Aquela mordida corroí as estruturas de seu pensamento. Uma náusea, tontura, invade seu cérebro. O mundo gira e gira pronto para desabar.   
    - Sinto que estou perdida. Estou tonta- disse Daisy em meio a uma nota triste do piano.
    - Volte para o presente. Não vale a pena viver o futuro, não por enquanto- contínua Lorde Harrison a filosofar- O tempo é capaz de trilhar vários labirintos, diversas ilusões para te esconder o bem mais precioso. O simples fato de viver o presente momento.
  Daisy, desesperada, se virou e arrastou o vestido pelo piso do salão, preto e branco, como um tabuleiro de xadrez. Andou com pressa, abriu as imensas portas de vidro e encontrou alguns coelhos brancos apressados, cigarras fumando e urubus dourados. Era dia. Aviões de guerra invadiam o céu azul bebê. Parou para descansar numa rocha próxima a lagoa. Sua respiração começou a fraquejar, se sentia frágil. Olhou para o sol, desmanchou-se em ilusão.
  
   Querida Mademoiselle Daisy,
     De todos os contos de fadas que existem, a maioria beira ao inevitável, incompreensível.
     Nessa manhã, encontrei seu vestido boiando pelo lago próximo de casa. Logo, a morte invadiu a minha mente. Não sei se nesse exato instante, seu corpo se encontra no espaço, sem oxigênio, sem vida, ou se virou o pólen que embeleza as flores das belas manhãs.
     Só sei de uma coisa, estou sozinho. Acordei sozinho em minha cama. Sua pressa, seu medo me assustou. Passado, presente e futuro pareciam entrelaçados. Fui pego de surpresa, o sopro do vento devastou meu corpo jovem e me vi com setenta anos, como na história daquele casal que te contei.
     Dessa vez, não havia ninguém com quem eu pudesse compartilhar o simples ato de existir. Nem sei se te beijei se senti seu corpo colado ao meu.
    Espero que meus unicórnios tenham te levado para um lugar seguro. Um lugar que não existe limites, muito menos o maldito tempo, pronto para nos enterrar em terra suja. Sepultar o nosso amor.
    Do seu,

    Lorde Harrison.

1 de ago. de 2014

A Caixa


    I
 “- Por favor, apague a luz- disse a esposa jovialmente.
   O marido a observou por três segundos antes de acionar a escuridão.”

   Realmente não era uma das tardes mais agradáveis em Jumandia, a cidade conheceu um dos dias mais frios dos últimos dez anos, e para piorar a situação, chovia fortemente e ininterruptamente.
  Os moradores se irritavam facilmente com o clima. Para alguns, o principal motivo era a água que entrava no sapato, sandália ou qualquer tipo de nome dado para um calçado, encharcando as meias. Ninguém conseguia se prevenir da chuva na parte inferior da calça jeans. Os guarda-chuvas entraram na moda instantaneamente, sem a menor necessidade de um glamoroso desfile.
  Entre uma multidão de pessoas que corria por diversas direções na rua mais movimentada da cidade, destacava-se um guarda-chuva preto carregado por Gustavo Lemarck.
  Os ponteiros da torre do relógio, ao final da rua, registravam quinze horas quando Gustavo, com sua camisa de lã preta e sua calça jeans molhada, atravessava a livraria “Sopa de Letras”. Em uma das mãos ele segurava uma caixa apoiada ao corpo, com a outra o tradicional guarda-chuva. Por dez segundos ele parou e observou a vitrine da livraria, depois continuou a sua caminhada até a primeira esquina, onde esbarrou em uma garota com um guarda-chuva rosa.
  - Você está louco- Esbravejou ela enquanto pegava as pastas que havia deixado cair no chão.
  Sem parar para ajudá-la, ele virou e entrou na travessa da rua principal da cidade. Com a caixa ainda grudada ao corpo, um beco apareceu diante de seus olhos. Naquela rua não havia nenhum comércio, apenas paredes de tijolos e poucas pessoas.
   Dessa vez, o vento ficou mais intenso e o guarda-chuva começou a perder a sua utilidade. Um clarão repentino anunciou a chegada dos raios. Gustavo parou assustado. Água caía generosamente do céu, luz ia e vinha como as ondas do mar.
  
   II
   “ O barulho da chuva se parece com uma canção de ninar.”
 
   Gustavo fechou a porta com a roupa toda molhada e logo acendeu a luz da sala.
   O cômodo simples dispunha de uma mesa central e alguns eletrodomésticos. O barulho da chuva continuava a incomodá-lo. Ele colocou a caixa em cima da mesa e ficou contemplando-a por alguns instantes.
   A caixa tinha forma retangular, cerca de sete centímetros de base e quatro centímetros de altura. Suas cores vermelho, amarelo e preto eram distribuídas de forma horizontal na parte superior da caixa. O resto aderia aos tons de marrom.
   Os olhos de Gustavo ficaram surpresos quando outra pessoa entrou na sala.
   - Você trouxe o que eu lhe pedi? – perguntou sua esposa.
   Gotas de chuva batiam na janela, tornando embaraçosa a visão da rua.
   Gustavo Lemarck se aproximou da esposa, coçou a cabeça e a tocou no braço antes de responder:
   - Claro, meu amor. Nem uma chuva de granizo seria capaz de me impedir.
   Um trovão cortou o silêncio.
   A esposa tirou, gentilmente, a mão do marido de seu braço e encaminhou-se lentamente até a caixa, que repousava de forma triunfal no centro da mesa.
   “Ela é tão bonita”, pensou fascinada. “Tem cheiro de terra molhada”.
    Goteiras começaram a se formar no teto rachado.
    Realizada, a esposa sorriu e com suas mãos delicadas, abriu a caixa.
 
   III
   Olhos de ressaca admiravam o conteúdo da caixa, sua íris verde brilhava fortemente como um parque em dias ensolarados.
   Entre as cores da realidade e da imaginação, ela podia sentir o sol aquecendo-lhe a pele lisa e branca, o cheiro das flores silvestres perfumarem o ambiente hostil. A Terra parecia em constante movimento, girando e girando em torno de si mesma ou em torno do sol.
  Parecia futuro, mas era passado. Concretizava esperança e ao mesmo tempo angústia.
  Estranhos perdidos no tempo. Na chuva, na neve ou no sol. Nos segundos ou nos dias outonais que o vento devastou.
  As unhas da esposa, Isabela Lemarck, tocaram o conteúdo da caixa carinhosamente.
  - Estão congelados- lamentou.
  Gustavo tirou os cabelos negros de perto dos olhos antes de encostar-se a sua amada e abraçar-lhe a cintura.
  - Senhor e senhora Lemarck- sussurrou em seu ouvido- Lembra dessas palavras?
  - Como posso esquecer- suspirou ela enquanto fechava os olhos- Todo dia me recordo daqueles votos, da importância daquele momento... Como se fosse o início de tudo e não o seu fim.
  - Não me diga que perdeu a fé – suplicou Gustavo, prendendo-a mais forte de encontro ao seu corpo.
  - Não perdi somente a fé- declarou- Mas a vontade de viver- uma lágrima escorreu do seu rosto.
  Gustavo aos poucos se afastou.
  Isabela observou as fotos que tinham dentro da caixa. Sorrisos mostravam o ápice da realização. O pior dos finais felizes é que suas continuações sempre são assombradas por decepções e incertezas, visto que nenhuma felicidade se perpetuará em vossos corações.
  Suas mãos pegaram uma caixa de fósforos no bolso.
  Sem piedade, Isabela ateou fogo a linda caixa. Labaredas engoliram as fotos raivosamente transformando-as em cinzas. 
  E tudo começou em gelo e terminou em fogo.
  Chuva escorria pela veneziana como se o universo chorasse pelo tempo perdido.

 IV
 Isabela já estava cama, pronta para dormir.
 O marido apagou o fogo com a água abundante em Jumandia. Daquelas fotos, não restava o menor vestígio de quem ele realmente fora um dia.
 Devastado, o futuro parecia aterrorizante.
 Gustavo não sabia muito bem como agir, de repente apareceu na soleira da porta do quarto.
 - O que fizemos? – perguntou angustiado.
 - Enterramos uma história para viver outra- respondeu Isabela de forma natural.
 - E como nós ficamos?
 - Prontos para renascer.
 - Como se nada tivesse acontecido?
 - Como se tudo tivesse acontecido- pronunciou lentamente.
 Gustavo Lemarck começou a andar.
  - Por favor, apague a luz- disse a esposa jovialmente.
  O marido a observou por três segundos antes de acionar a escuridão.

8 de jul. de 2014

Monstro

Por todos os lados, todos os sentidos.
Um guarda-roupa que não se abre, mas faz barulho. Alguém que não se vê, mas se sente.
Realmente não sei, ou talvez finjo não saber o teor assustador de sua essência.
Numa das casas que desfruto de bela solidão, toco meu violão tranquilo, apreciando a paisagem bucólica. Com o chapéu, cobrindo meus cabelos castanhos encaracolados como uma cascata, faz tempo que não o vejo subir o vilarejo.
Canto à noite inteira "Frutos dos Velhos Tempos" até que se esgote a cerveja.
E como sempre, depois das loucuras e dos devaneios sinto seu frio invadir a porta e seu barulho silencioso subir a escada.
Eu sinto o seu sopro invadir o meu quarto e sua sombra se espalhar pelo brilho dos meus olhos, fazendo-me chorar.
Mãos esqueléticas vão de encontro ao meu corpo despejar maledicência. Nesse instante, cuidadosamente, o monstro fecha a janela, e enterra a paisagem nas terras de minhas lembranças esperançosas.
Tento falar, contudo não posso.
Tenho medo de suas vestes escuras, de seu beijo outonal.
De repente, o violão começa a tocar sozinho, uma nota esquarteja o mutismo e por incrível que pareça, me remete a paz e grito.
A madruga desperta juntamente com os ponteiros do relógio que parecem engasgar.
Não há tempo para mais nada.
O monstro me olha com seus olhos escuros como o fundo de um poço e eu tento discordar, com lágrimas percorrendo meus lábios. O pânico me toma conta enquanto suas garras rasgam minha pele. E eu penso "não é a morte?" e ele disse:
- Futuro.
O peito aperta e o coração parece explodir.
O frio eterno parece a centímetros de se aproximar, suas presas cravam meu pescoço deixando o violão cair no chão.
Sangue quente escorre das veias pronto para lhe saciar.
Solto gritos de misericórdia. Rasgo a agonia com dor extrema.
Perco os movimentos com seu abraço esmagador.
Passos ressoam.
O monstro fecha a porta.




20 de jun. de 2014

Voltarei das Cinzas Para te Dizer


Não esquecerei daquele grito de alegria
Nem daquele lindo raio de luz
Sorrisos se perderam no passado
Junto com belos espetáculos
Junto com histórias de amor
Nem sempre busco felicidade
Tampouco a aurora do esplendor
Quero grito de tristeza, Quero sonhar com o impossível
E naquele belo caminho de flores
Morrer com o cheiro daquilo
Sentir o azul me encobrindo
Igual o dia da imensidão
Em que o brilho dos meus olhos estrelar
Trouxe paz a vida e diversão
Sem aqueles receios de textos e palavras
Sei que o mundo não se importa com isso
Não consigo entender de grandeza
Já que cada pessoa habita um pequeno ciclo
E para aquelas idealizações
Puras como diamante
Solto uma lágrima triste e bebo o pecado em sabores.
Eu voltarei das cinzas para te dizer um nada e tudo muito sincero.
Chega de normas, leis, crimes
Se tudo o que me espera é um acolhimento gelado
Beirando a lagoa da ilusão
Sozinho, irei embora do mundo
Sem entender todas essas palavras
Que passaram com tanta rapidez pela vida
E pra Muitos não queria dizer nada!